quinta-feira, dezembro 31, 2015

Drummond diz que para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você tem de fazê-lo novo. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.


Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ver,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta ou recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

quinta-feira, dezembro 24, 2015

Poema de Natal, de Vinícius de Moraes, por ele mesmo. Para lembrar e ser lembrados.


Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

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segunda-feira, dezembro 21, 2015

Agora vou-me. Ou me vão? Ou é vão ir ou não ir? Drummond e suas dúvidas em sua canção final.


Canção final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, dezembro 19, 2015

Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Eu simplesmente sinto com a imaginação, não uso o coração, admite Fernando Pessoa.


Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me  falha ou finda,
É como  que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do  que não está ao  pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quarta-feira, dezembro 16, 2015

Manoel de Barros não quer saber como as coisas se comportam, quer inventar comportamento para as coisas. Apenas ele não tem polimentos de ancião.


Comportamento

Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento linguístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro –
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.


Manoel de Barros
(1916-2014)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

terça-feira, dezembro 15, 2015

Faça qualquer coisa, mas pelo amor de Deus, ou de nós dois, seja. É só o que pede Leminski ao seu amor.


Objeto

Objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo

seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
seja.

Paulo Leminski
(1944-1989])

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quinta-feira, dezembro 10, 2015

Até morrer estarei enamorada de coisas impossíveis. Sem mais nada além de mim, numa eternidade inútil, confessa Cecília.


Eternidade inútil

Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:

tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.

Não chorarei minha triste brevidade
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n'água.

A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.

O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Por quê?


Por quê?

Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido
ao sentido de viver, amar, morrer?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Para Manuel Bandeira, a alma é que estraga o amor. Se queres sentir a felicidade de amar, esquece-a e deixa teu corpo entender-se com outro corpo, porque os corpos se entendem, mas as almas não.


Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus, ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Bem que o mundo não seria se o nosso amor lhe faltasse. Mas as manhãs que não temos são nossos lençóis de linho, diz todo o amor de José Saramago.


Teu corpo de terra e água 

Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.

Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho

Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho

Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho

José Saramago 
(1922-2010)

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

domingo, dezembro 06, 2015

Depois que todos foram, foi também o dia. E ficaram entre as sombras das áleas apertadas eu e a minha agonia, quem eu fui e quem sou, só eu e eu sem mim, eu e quem sei não ser, lembra com tristeza Fernando Pessoa.


Depois

Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e a minha agonia.

A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.

Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.

Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não ser.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, dezembro 05, 2015

O amor em tercetos, por Thiago de Mello.



Tercetos de amor

§ Só agora aprendi
que amar é ter e reter.
Foi quando te vi.


§ Vi quando a rosa se abriu.
Como a eternidade
pode ser tão fugaz?

§ Não sei quando é o mar,
ou se é o sol dos teus cabelos.
Tudo são funduras.

§ Na entressombra, o sabre
se estira na relva morna.
O nenúfar se abre.

§ Brilha um dorso: és tu.
Encontro no teu ventre
a explicação da luz.

Thiago de Mello
(1926)

Mais sobre Thiago de Mello em
https://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

sexta-feira, dezembro 04, 2015

Na ode de Ricardo Reis, cada um cumpre o destino que lhe cumpre e deseja o destino que deseja. Nem cumpre o que deseja, nem deseja o que cumpre.


Cada um

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quarta-feira, dezembro 02, 2015

Um dia e a vida. Segundo uma andorinha cantadora e um poeta com seus versos.



Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira