segunda-feira, novembro 05, 2012

Ao ver escoar-se a vida humanamente em suas águas certas, Mário de Sá-Carneiro hesita. E detém-se às vezes na torrente das coisas geniais em que medita.


Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente 
Em suas águas certas, eu hesito, 
E detenho-me às vezes na torrente 
Das coisas geniais em que medito. 

Afronta-me um desejo de fugir 
Ao mistério que é meu e me seduz. 
Mas logo me triunfo. A sua luz 
Não há muitos que a saibam refletir. 

A minh'alma nostálgica de além, 
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto, 
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto 
Que tenho a força de sumir também. 

Porque eu reajo. A vida, a natureza, 
Que são para o artista? Coisa alguma. 
O que devemos é saltar na bruma, 
Correr no azul à busca da beleza. 

É subir, é subir além dos céus 
Que as nossas almas só acumularam, 
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus 
Que as nossas mãos de auréola lá douraram. 

É partir sem temor contra a montanha 
Cingidos de quimera e d'irreal; 
Brandir a espada fulva e medieval, 
A cada hora acastelando em Espanha. 

É suscitar cores endoidecidas, 
Ser garra imperial enclavinhada, 
E numa extrema-unção d'alma ampliada, 
Viajar outros sentidos, outras vidas. 

Ser coluna de fumo, astro perdido, 
Forçar os turbilhões aladamente, 
Ser ramo de palmeira, água nascente 
E arco de ouro e chama distendido... 

Asa longínqua a sacudir loucura, 
Nuvem precoce de subtil vapor, 
Ânsia revolta de mistério e olor, 
Sombra, vertigem, ascensão--Altura! 

E eu dou-me todo neste fim de tarde 
À espira aérea que me eleva aos cumes. 
Doido de esfinges o horizonte arde, 
Mas fico ileso entre clarões e gumes!... 

Miragem roxa de nimbado encanto-- 
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço! 
Alastro, venço, chego e ultrapasso; 
Sou labirinto, sou licorne e acanto. 

Sei a Dist
ância, compreendo o Ar; 
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; 
Sou taça de cristal lançada ao mar, 
Diadema e timbre, elmo rial e cruz... 
.................................................... 
....................................................

O bando das quimeras longe assoma... 

Que apoteose imensa pelos céus! 
A cor já não é cor- é som e aroma! 
Vem-me saudades de ter sido Deus... 

....................................................
Ao triunfo maior, avante pois! 
O meu destino é outro--é alto e é raro. 
Unicamente custa muito caro: 
A tristeza de nunca sermos dois...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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