terça-feira, julho 31, 2012

Para Paulo Mendes Campos, domingo era o instante das pausas, o pouso dos tristes, o porto do insofrido. E ele lia poemas nos parques.


Os domingos

Todas as funções da alma estão perfeitas neste domingo.
O tempo inunda a sala, os quadros, a fruteira.
Não há um crédito desmedido de esperança.
Nem a verdade dos supremos desconsolos -
Simplesmente a tarde transparente,
Os vidros fáceis das horas preguiçosas,
Adolescência das cores, preciosas andorinhas.

Na tarde – lembro – uma árvore parada,
A alma caminhava para os montes,
Onde o verde das distâncias invencidas
Inventava o mistério de morrer pela beleza.
Domingo – lembro – era o instante das pausas,
O pouso dos tristes, o porto do insofrido.
Na tarde, uma valsa; na ponte, um trem de carga;
No mar, a desilusão dos que longe se buscaram;
No declive da encosta, onde a vista não vai,
Os laranjais de infindáveis doçuras geométricas;
Na alma, os azuis dos que se afastam,
O cristal intocado, a rosa que destoa.
Dos meus domingos sempre fiz um claustro.
As pétalas caíam no dorso das campinas,
A noite aclarava os sofrimentos,
As crianças nasciam, os mortos se esqueciam mortos,
Os ásperos se calavam, os suicidas se matavam.
Eu, prisioneiro, lia poemas nos parques,
Procurando palavras que espelhassem os domingos.
E uma esperança que não tenho.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

segunda-feira, julho 30, 2012

Mia Couto sente que precisa ser um outro para ser ele mesmo. Porque no mundo que combate, ele morre, e no mundo por que luta, ele nasce.



Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Mia Couto
(1955)

Mais sobre Mia Couto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mia_Couto

domingo, julho 29, 2012

Fernando Pessoa diz que cansa ser, sentir dói, pensar destrui. E a alma chora.



Cansa ser

Cansa ser, sentir dói, pensar destrui,
Alheia a nós, em nós e fora,
Rui a hora, e tudo nela rui.
Infelizmente a alma o chora.

De que serve? O que é que tem que servir?
Pálido esboço leve
Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir...
Vago sussurro breve.

Das pequenas vozes com que a manhã acorda,
Da fútil promessa do dia,
Morta ao nascer, na 'sperança longínqua e absurda
Em que a alma se fia.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sexta-feira, julho 27, 2012

Para Bertolt Brecht, na Alemanha que há de surgir da derrota do nazismo só podem ficar céu e terra e vento e tudo realizado pelos homens. Mas a canalha dos exploradores, isso não pode ficar.



Sobre a Alemanha

Vós, amáveis bosques bávaros, vós, cidades do Meno
Montanhas de pinheiros do Hesse, umbrosa Floresta Negra
Vós ficareis.
Encostas vermelhas da Turíngia, arbustos modestos de Brandenburgo
E vós, cidades negras do Ruhr, atravessadas por barcas de ferro
Por que não deveis ficar?
Também tu, Berlim feita de muitas cidades
Laboriosa sob e acima do asfalto, podes ficar, e vós
Portos hanseáticos, vós cidades fervilhantes
Da Saxônia, vós ficareis, e vós, cidades silésias
Cobertas de fumaça, a olhar para o Leste, ficareis também.
Apenas a escória de generais e gauleiters
Apenas os senhores da indústria e os corretores da bolsa
Apenas os grandes proprietários e os intendentes devem desaparecer.
Céu e terra e vento e tudo realizado pelos homens
Podem ficar, mas
A canalha dos exploradores, isso
Não pode ficar.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brechet em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

quinta-feira, julho 26, 2012

Inverno, manhã cedo, a luz que banha a paisagem é gélida e cinzenta. E António Papança olha essa paisagem, que foi testemunha de sua vida, povoada agora de visões errantes.


Reguengos

Inverno, manhã cedo. A luz que banha
A paisagem é gélida e cinzenta;
A vaga pompa do cenário ostenta,
Ao largo, as serras húmidas de Espanha.

Hortas, vinhedos e a carcaça estranha
De Monsaraz, numa ascensão violenta;
A erva tenrinha os gados apascenta,
Que em tons de bronze a terra desentranha.

E eu olho essa página dolorida,
Testemunha que foi da minha vida,
Povoada agora de visões errantes...

Eu olho-a e dentro da minha alma, afago-a,
Que os teus olhos longínquos, rasos de água,
São hoje os mesmos que me olhavam dantes.

António de Macedo Papança
(1852-1913)

Mais sobre António de Macedo Papança em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Conde_de_Monsaraz

quarta-feira, julho 25, 2012

Augusto Frederico Schmidt não lembra se tinha flores perto dela, mas lembra que nascia um perfume do seu corpo. Que amor o do poeta!



Elegia

Entrou na sala e ficou em pé tocando piano,
Sua mão pequena batia no teclado duramente.

Lembro que estava de vermelho
Lembro que tinha nas tranças finas uma fita preta
Lembro que era de tarde
E entrava pelas janelas abertas o vento do mar.

Não lembro se tinha flores perto dela
Mas nascia um perfume do seu corpo.

Que amor o meu!

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em

segunda-feira, julho 23, 2012

Se me deixares, eu digo o contrário a toda gente. Neste mundo de enganos fala verdade quem mente, ameaça António Botto.


Se me deixares, eu digo


Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente;
E, neste mundo de enganos,
Fala verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado comigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente.

António Botto
(1897-1959)

Mais sobre António Botto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Botto

domingo, julho 22, 2012

Passou? Nada que eu sinta, passa realmente. É tudo ilusão de ter passado, diz um Drummond mais vivo do que nunca.


Não passou

Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão - a tua mão, nossas mãos -
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade



sexta-feira, julho 20, 2012

No teatro de Artur de Azevedo, a condessa esconde o fruto de um amor culpado. E depois de lavada a honra do conde com algumas mortes, cai o pano para que outra catástrofe não aconteça.


Impressões de teatro


Que dramalhão! Um intrigante ousado,
Vendo chegar de longa ausência o conde,
Diz-lhe que a pobre da condessa esconde
No seio o fruto de um amor culpado.

Naturalmente o conde fica irado
O pai que é? Pergunta — Eu lhe responde
Um jovem que entra. — Um duelo! — Sim! Quando? Onde?—
No encontro morre o amante desgraçado.

Folga o intrigante... Porém surge um mano
E, vendo morto o irmão, perde a cabeça:
Crava um punhal no peito do tirano.

É preso o mano, mata-se a condessa,
Endoidece o marido, e cai o pano,
Antes que outra catástrofe aconteça.

Artur Azevedo
(1855-1908)

Mais sobre Artur de Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_de_Azevedo

quinta-feira, julho 19, 2012

Augusto Mayer confessa que não tem mais palavras. Seu amor está levando toda a sua vida e até mesmo o seu orgulho.


Gaita


Eu não tinha mais palavras,
Vida minha,
Palavras de bem querer;
Eu tinha um campo de mágoas,
Vida minha,
Para colher.

Eu era uma sombra longa,
Vida minha,
Sem cantigas de embalar;
Tu passavas, tu sorrias,
Vida minha,
Sem me olhar.

Vida minha, tem pena,
Tem pena de minha vida!
Eu sei bem que vou passando
Como a tua sombra longa;
Eu bem sei que vou sonhar
Sem colher a tua vida,
Vida minha,
Sem ter mãos para acenar,
Eu bem sei que vais levando
Toda, toda a minha vida,
Vida minha, e o meu orgulho
Não tem voz para chamar.

Augusto Meyer
(1902-1970)

Mais sobre Augusto Meyer em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Meyer




quarta-feira, julho 18, 2012

Quanto sofre o pobre amor de Aluísio de Azevedo. Sofre se ela pecasse, mas sofre mais até porque ela resiste.


Pobre amor

Calcula, minha amiga, que tortura!
Amo-te muito e muito, e, todavia,
Prefirira morrer a ver-te um dia
Merecer o labéu de esposa impura!

Que te não enterneça esta loucura,
Que não te mova nunca esta agonia,
Que eu muito sofra porque és casta e pura,
Que, se o não foras, quanto eu sofreria!

Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
Com teu beijos de amor, meus lábios tristes,
Com teus beijos de amor, as minhas faces!

Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
Mas quanto sofro mais porque resistes!

Aluísio de Azevedo
(1857-1913)

Mais sobre Aluísio de Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alu%C3%ADsio_Azevedo

terça-feira, julho 17, 2012

Ascenso Ferreira se espantou quando viu o gênio da raça. E ao contrário do que vocês estão pensando, o gênio não era Rui Barbosa.


O gênio da raça

Eu vi o gênio da raça!!!
(Aposto como vocês estão pensando que eu vou
falar de Rui Barbosa).
Qual!
O Gênio da Raça que eu vi
foi aquela mulatinha chocolate
fazendo o passo de siricongado
na terça-feira de carnaval!

Ascenso Ferreira
(1895-1965)

Mais sobre Ascenso Ferreira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascenso_Ferreira

domingo, julho 15, 2012

Alberto Caeiro está confuso, perturbado, querendo perceber não sabe bem como nem o quê... E se pergunta: mas quem me mandou a mim querer perceber? quem me disse que havia que perceber?


Como quem

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever sentí-lo.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quinta-feira, julho 12, 2012

Como se moço e não bem velho fosse, Alphonsus de Guimaraens sente que uma nova ilusão veio animar-lhe. Até acordar do áureo sonho em sobressalto.


Como se moço e não bem velho eu fosse

Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh'alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto...

Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)

Mais sobre Alphonsus Guimaraens em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alphonsus_de_Guimaraens

quarta-feira, julho 11, 2012

É na intimidade e no segredo que Antero de Quental mais a adora. E a quer mais quando ela, mentindo, jura, até por Cristo, que lhe tem amor...


Intimidade

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te nao comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me as vezes a cabeça a roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E nao te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
 - mentindo - que me tens amor...

Antero de Quental
(1842-1891)

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terça-feira, julho 10, 2012

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui, na terra onde nasceste e eu nasci? Numa pergunta, todo o sentimento de Alexandre O'Neill pela sua cidade.


E de novo Lisboa...

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?

Alexandre O'Neill
(1924-1986)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_O%27Neill 

segunda-feira, julho 09, 2012

Antonio Cícero passa seu tempo inteiro a enfrentar um só problema. Ele quer ao menos em seu poema agarrar o passageiro.


Desejo

Só o desejo não passa
e só deseja o que passa
e passo meu tempo inteiro
a enfrentar um só problema
ao menos no meu poema
agarrar o passageiro.

Antonio Cícero
(1945)

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domingo, julho 08, 2012

Álvaro de Campos confessa que está farto de símbolos, todos lhe dizem nada. Ele quer mesmo é que o namorado que deixou a costureira volte para ela.



Símbolos?

Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. -
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria - pobre figura de miséria e desamparo! -
Que o namorado voltasse para a costureira.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sexta-feira, julho 06, 2012

Meu enredo morreu, sou triste agora. Se foras minha tu verias cedo morrer tua ilusão, diz a paixão de Alvares de Azevedo.


Pensamentos dela

Talvez, à noite, quando a hora finda
Em que eu vivo de tua formosura,
Vendo em teus olhos... nessa face linda
A sombra de meu anjo da ventura,
Tu sorrias de mim porque não ouso
Leve turbar teu virginal repouso,
A murmurar ternura.

Eu sei. Entre minh'alma e tua aurora
Murmura meu gelado coração.
Meu enredo morreu. Sou triste agora,
Estrela morta em noite de verão!
Prefiro amar-te bela no segredo!
Se foras minha tu verias cedo
Morrer tua ilusão!

Eu não sou o ideal, alma celeste,
Vida pura de lábios recendentes,
Que teu imaginar de encantos veste
E sonhas nos teus seios inocentes!...
Flor que vives de aromas e luar,
Oh! nunca possas ler do meu penar
As páginas ardentes!

Se em cânticos de amor a minha fronte
Engrinaldo por ti, amor cantando,
Com as rosas que amava Anacreonte,
É que alma dormida, palpitando...
No raio de teus olhos se ilumina,
Em ti respira inspiração divina
E ela sonha cantando!

Não a acordes contudo. A vida nela
Como a ave no mar suspira e cai...
Às vezes, teu alento de donzela
E de teus lábios o morrer de um ai,
Tua imagem de fada, num instante
Estremecem-na, embalam-na expirante
E lhe dizem: "sonhai!"

Mas quando o teu amante fosse esposo
E tu, sequiosa e lânguida de amor,
O embalasses ao seio voluptuoso
E o beijasses dos lábios no calor,
Quando tremesses mais, não te doera
Sentir que nesse peito que vivera
Murchou a vida em flor?

Alvares de Azevedo
(1831-1852)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo

quinta-feira, julho 05, 2012

Ninguém diz, ninguém vê, ninguém faz como você. Ninguém me canta, ninguém me encanta como você, nos versos de amor de Alice Ruiz.


Ninguém me canta como você

ninguém me canta
como você
ninguém me encanta
como você
nem me vê
do jeito
que só você
de que adianta
ter olhos
e não saber ver
ter voz
mas não não ter o que dizer
digam o que disserem
façam o que quiserem
ninguém diz
ninguém vê
ninguém faz
como você
ninguém me canta
ninguém me encanta
como você

Alice Ruiz
(1946 )

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz 

quarta-feira, julho 04, 2012

Não te amo, quero-te. O amor vem d'alma, o amor é vida, diz com espanto o medo e terror de Almeida Garrett à mulher que tanto ama.


Não te amo


Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n 'alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.
Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett

(1789-1854)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Garrett

segunda-feira, julho 02, 2012

Para António Gedeão, o Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma. E esta fresta de nada aberta no vazio deve ser um intervalo.


Máquina do mundo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá lo e tê lo, erguê lo e defrontá lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

António Gedeão
(1906-1997)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho

domingo, julho 01, 2012

Para Alberto Caeiro, pensar em Deus é desobedecer a Deus. E Ele dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio onde ir ter quando acabemos!


Pensar em Deus

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que não o conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa