quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Álvaro de Campos está bêbado de toda a injustiça do mundo. E diz que seus versos são a sua impotência.


E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...

- O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona d'água,
Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva.
E a vasta humilhação de existir um amor taciturno -
Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,
Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria -

Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma
A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.

Meus versos são a minha impotência.
O que não consigo, escrevo-o;
E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.

A costureira estúpida violada por sedução,
O marçano rato preso sempre pelo rabo,
O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
- Não distingo, não louvo, não (...) -
São todos bichos humanos , estupidamente sofrentes.

Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,
Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,
E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.

Meu coração esquife, meu coração (...), meu coração cadafalso -
Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.

Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,
Bebedeira da servilidade altruísta,
Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

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