segunda-feira, dezembro 31, 2012

Sejamos graves e prodigiosos, ó minha amada, e sejamos também irmãos e amigos. Poema de Ano-Novo, por Vinicius de Moraes.


Poema de Ano-Novo


É preciso que nos encontremos diante do amor como as árvores fêmeas
cuja raiz é a mesma e se perde na terra profana
É preciso...a tristeza está no fundo de todos os sentimentos
como a lágrima no fundo de todos os olhos
Sejamos graves e prodigiosos, ó minha amada, e sejamos também irmãos e amigos.

É preciso que levemos diante de nós o retrato das nossas almas
como se fôssemos a um tempo a Verônica e o Crucificado
Eu sou o eterno homem e hoje que a dor fecunda o tempo
eu sinto mais que nunca a vontade de fechar os braços sobre a minha miséria.
Fiquemos como duas crianças pensativas sentadas numa escada
- todos serão os peregrinos e apenas nós os contemplados.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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Vai, ano velho, vai de vez, leva tudo. Vem Ano Novo, vem veloz, agora é recomeçar, a utopia é urgente, na esperança de Affonso Romano de Sant' Anna.


Vai, ano velho


Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.

Affonso Romano de Sant'Anna

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Drummond diz que para ganhar um ano novo que mereça este nome,você tem de fazê-lo novo. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.


Receita de Ano Novo 


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ver,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta ou recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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segunda-feira, dezembro 24, 2012

Para isso fomos feitos, para lembrar e ser lembrados. Poema de Natal, de Vinicius de Moraes, por ele mesmo.




Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

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quarta-feira, dezembro 19, 2012

Depois de tão isósceles, Leminski acordou bemol. Faz sentido?


Acordei bemol

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido

Paulo Leminski
(1944-1989)

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terça-feira, dezembro 18, 2012

Bernardo da Mata seguia umas pregações do Padre Antonio Vieira. Para Manoel de Barros, esse Bernardo tem cacoete para poeta.


Pois pois

O Padre Antônio Vieira pregava de encostar as orelhas na boca do bárbaro.
Que para ouvir as vozes do chão
Que para ouvir a fala das águas
Que para ouvir o silêncio das pedras
Que para ouvir o crescimento das árvores
E as origens do Ser. Pois Pois.
Bernardo da Mata nunca fez outra coisa
Que ouvir as vozes do chão
Que ouvir o perfume das cores
Que ver o silêncio das formas
E o formato dos campos. Pois Pois.
Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno, os escutamentos de Bernardo.
Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para poeta.

Manoel de Barros
(1916)

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domingo, dezembro 16, 2012

A cavalo de galope, a cavalo de galope, lá vem a morte chegando. E Drummond se sente sobrante e oco porque a desembestada está levando seus amigos, seus pais e irmãos, seus amores, sua vida.


A morte a cavalo

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a cavalo de galope
lá vem a morte chegando.

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a morte numa laçada
vai levando meus amigos.

A cavalo de galope
depois de levar meus pais
a morte sem prazo ou norte
vai levando meus irmãos.

A morte sem avisar
a cavalo de galope
sem dar tempo de escondê-los
vai levando meus amores.

A morte desembestada
com quatro patas de ferro
a cavalo de galope
foi levando minha vida.

A morte de tão depressa
nem repara no que fez.
A cavalo de galope
a cavalo de galope

me deixou sobrante e oco.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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segunda-feira, dezembro 10, 2012

O touro só tem a sua vida, os homens tem seus cavalos, vai-se o touro manco, morto mas não desonrado. Assim, em versos de orgulho e dor, Ariano Suassuna conta a morte do seu pai, assassinado a mando de um coronel do sertão.


A morte do touro Mão de Pau*


Corre a Serra Joana Gomes
galope desesperado:
um touro se defendendo,
homens querendo humilhá-lo,
um touro com sua vida,
os homens em seus cavalos.
Cortava o gume das pedras
um bramido angustiado,
se quebrava nas catingas
um galope surdo e pardo
e os cascos pretos soavam
nas pedras de fogo alado,
enquanto o clarim da morte,
ao vento seco e queimado,
na poeira avermelhada
envolvia os velhos cardos.
Rasgavam a serra bruta
aboios mal arquejados
e, nas trilhas já cobertas
pelo pó quente e dourado,
um gemido de desgraça,
um gemido angustiado:
- "Adeus, Lagoa dos Velhos!
adeus, vazante do gado!
adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
O touro só tem a vida:
os homens têm seus cavalos"!
O galopar recrescia:
brilhavam ferrões farpados
e algemas de baraúna
para o touro preparados.
Seu Sabino tinha dito:
- "Ele há de vir amarrado"!
Miguel e Antônio Rodrigues,
de guarda-peito e encourados,
na frente do grupo vinham,
montados em seus cavalos
de pernas finas, ligeiras,
ambos de prata arreados.
E, logo à frente, corria
o grande touro marcado,
manquejando sangue limpo
nos caminhos mal rasgados,
cortadas as bravas ancas
por ferrões ensanguentados.
A Serra se despenhava
nas asas de seus penhascos
e a respiração fogosa
dos dois fogosos cavalos
já requeimava, de perto,
as ancas do manco macho
quando ele, vendo a desonra,
tentando subjugá-lo,
mancando da mão preada
subiu num rochedo pardo:
Num grito, todos pararam,
pelo horror paralisados,
pois sempre, ao rebanho, espanta
que um touro do nosso gado
às teias da fama-negra
prefira o gume do fado.
E mal seus perseguidores
esbarravam seus cavalos,
viram o manco selvagem
saltar do rochedo pardo:
-"Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
Assim vai-se o touro manco,
morto mas não desonrado"!
Silêncio. A Serra calou-se
no poente ensanguentado.
Calou-se a voz dos aboios,
cessou o troar dos cascos.
E agora, só, no silêncio
deste sertão assombrado,
o touro sem sua vida,
os homens em seus cavalos.

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

*Ariano Suassuna escreveu este poema em memória de seu pai, assassinado em 1930"

domingo, dezembro 09, 2012

Que coisa distante está perto de mim? Sei que estou sentindo a boca sorrindo aos sonhos que sou, é tudo o que sabe Fernando Pessoa,


Que coisa distante

Que coisa distante
Está perto de mim?
Que brisa fragrante
Me vem neste instante
De ignoto jardim?

Se alguém mo dissesse,
Não quisera crer.
Mas sinto-o, e é esse
O ar bom que me tece
Visões sem as ver.

Não sei se é dormindo
Ou alheado que estou:
Sei que estou sentindo
A boca sorrindo
Aos sonhos que sou.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Manhãzinha, a italiana vem na praia do ribeirão, respira, afinal se espreguiça erguendo pros anjos o colo criador. E Mário de Andrade está lá, de olho nela.


Arraiada

Manhãzinha
A italiana vem na praia do ribeirão.
Vem derreada  e com a sombra do sono no canto dos olhos.
Põe a trouxa de roupas na lapa
E erguida fica um momentinho assim no Sol.
A narina dela mexe que nem peito de rolinha.
Mastiga a boca sem lavar
Que tem um visgo de banana e de café.
Respira
Afinal se espreguiça
Erguendo pros anjos o colo criador.

Mário de Andrade
(1892-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

quinta-feira, dezembro 06, 2012

De um lado e doutro, terra e gente. Para Miguel Torga, lados e filhos desta mesma serra, o mesmo céu os olha e os consente.


Fronteira

De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente. doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.

O mesmo beijo aqui; o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcatéia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.

Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.

Miguel Torga 
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Adeus, adeus, adeus! Para Augusto dos Anjos no mundo tudo acabou-se, apenas restam mágoas.


Adeus, adeus, adeus! 

Adeus, adeus, adeus! E, suspirando,
Saí deixando morta a minha amada,
Vinha o luar iluminando a estrada
E eu vinha pela estrada soluçando.

Perto, um ribeiro claro murmurando
Muito baixinho como quem chorava,
Parecia o ribeiro estar chorando
As lágrimas que eu triste gotejava.

Súbito ecoou do sino o som profundo!
Adeus! - eu disse. Para mim no mundo
Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.

Mas no mistério astral da noute bela
Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No marulhar monótono das águas!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

terça-feira, dezembro 04, 2012

A mulher que Guilherme de Almeida pensava amar um dia deixou uma triste lembrança. E ele nem a viu passar, tão perdido que estava em seu sonho dourado.


Essa que eu hei de amar...

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia
será tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,
que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,
trazer luz e calor a essa alma escura e fria.

E quando ela passar, tudo o que eu não sentia
da vida há de acordar no coração, que vela…
E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela
como sombra feliz… — Tudo isso eu me dizia,

Quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,
e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me dizia adeus, como um sol triste…

E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,
mas ias tão perdido em teu sonho dourado,
meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!"

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

segunda-feira, dezembro 03, 2012

João Cabral de Melo jogou futebol e sempre foi um apaixonado torcedor do América do Recife. A famosa dor de cabeça fez com que ele parasse de jogar, mas nem o desábito de vencer o fez deixar de torcer pelo seu clube do coração.


O torcedor do América F.C.

O desábito de vencer
não cria o calo da vitória
não dá a vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.

João Cabral de Melo
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

domingo, dezembro 02, 2012

Declaração de amor de Drummond, por Drummond. Só ele mesmo...





Minha flor minha flor minha flor.
Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro.
Minha peônia.
Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão.
Minha gérbera.
Minha clívia.
Meu cimbídio.
Flor flor flor.
Floramarílis. Floranêmona. Florazálea.
Clematite minha.
Catléia delfínio estrelítzia.
Minha hortensegerânea.
Ah, meu nenúfar.
Rododendro e crisântemo e junquilho meus.
Meu ciclâmen.
Macieira-minha-do-japão.
Calceolária minha.
Daliabegônia minha.
Forsitiaíris tuliparrosa minhas.
Violeta...
Amor-mais-que-perfeito.
Minha urze.
Meu cravo-pessoal-de-defunto.
Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.

Carlos Drummond de Andrade
(1895-1974)

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sexta-feira, novembro 30, 2012

O pão de Açúcar e a poesia de cada dia, segundo Oswald de Andrade.


Escapulário

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia

Oswald de Andrade
(1890-1954)

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quinta-feira, novembro 29, 2012

As ironias do desgosto sempre acabam por destruir as relações amorosas. Esta é a certeza que Cesário Verde demonstra em versos carregados de fel.


Ironias do desgosto

Onde é que te nasceu - dizia-me ela às vezes -
O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
Por que é que não possuis a verve dos Franceses
E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?

Por que é que tens no olhar, moroso e persistente,
As sombras d'um jazigo e as fundas abstrações,
E abrigas tanto fel no peito, que não sente
O abalo feminil das minhas expansões?

Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
Mas quando tentas rir parece, então, meu bem,
Que estão edificando um negro cadafalso
E ou vai alguém morrer ou vão matar alguém!

Eu vim - não sabes tu? - para gozar em maio,
No campo, a quietação banhada de prazer!
Não vês, ó descorado, as vestes com que saio,
E os júbilos que abril acaba de trazer?

Não vês que como a campina é toda embalsamada
E como nos alegra em cada nova flor?
E então por que é que tens na fronte consternada
Um não sei quê tocante e enternecedor?

E eu só lhe respondia: Escuta-me. Conforme
Tu vibras os cristais da boca musical,
Vai nos minando o tempo, o tempo - o cancro enorme
Que te há de corromper o corpo de vestal.

E eu calmamente sei, na dor que me amortalha,
Que a tua cabecinha ornada à Rabagas,
A pouco e pouco há de ir tornando-se grisalha
E em breve ao quente sol e ao gás alvejará.

Cesário Verde
(1855-1886)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde








quarta-feira, novembro 28, 2012

A moça da cidade foi morar na fazenda, numa casa velha feita pelo seu bisavô. E Raquel de Queiroz conta em versos como uma simples telha de vidro mudou a vida daquela moça.



Telha de vidro

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!

Raquel de Queiroz
(1910-2003)

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terça-feira, novembro 27, 2012

Lya Luft lembra-se dele em um instante absoluto. E diz que se é só isso que podem ter, que seja forte e que seja único.


Lembro-me de ti

Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.

Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.

Lya Luft
(1938)

Mais sobre em Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

segunda-feira, novembro 26, 2012

Murilo Mendes sofre com ciúme até do pai e da mãe da mulher amada, sem falar do homem que a desvirginou. E também de Deus, que o matando poderia extinguir enfim seu ciúme.


Poesia do ciúme

Eu nunca poderia aplacar esta ânsia absoluta,
Esta gana que tenho de ti
- Mesmo se te possuísse.
Eu tenho ciúme do teu pai e da tua mãe,
Eu tenho ciúme daquele que te desvirginou,
Eu tenho ciúme de Deus
Que fundiu o molde da tua alma rebelada,
De Deus que me matando poderia
Extinguir enfim meu ciúme
Na noite total sem pensamento e sem sexo.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

domingo, novembro 25, 2012

Vinicius achava que a tia era feia e tinha pêlos oleosos na perna, mas... Quem não passou por uma situação ao menos parecida com a que o poetinha confessa em seus versos?


O eleito

Quando eu era menor na grande moradia
De minha avó materna e de meu pobre avô
Muitas vezes senti, como alguém que sonhou
Pesar sobre meu corpo o olhar da minha tia

Miserável, na frente mesmo dos avós
Que, velhos, sem amor, conversavam comigo
Deixava-me molhar de um riso de mendigo
Tremendo à comoção de uma volúpia atroz.

Na penumbra da sala lívida, amarela
Que te viu, minha mãe, antes de mãe, ser filha
Faminto como um cão no cio, sem família
Tocava sob a mesa a perna quente dela.

Ficava assim, as mãos geladas, os pés úmidos
Sem forças para olhar aquela mulher feia
Que tinha pêlos oleosos sob a meia
E esmagava na blusa os belos seios túmidos.

A náusea de mim mesmo abria-me a garganta
Tão forte quanto o mal que me engrossava o sangue
E era como se eu fosse alguma coisa exangue
E como se ela fosse alguma coisa santa.

Meus sonhos de beleza e meus votos de ideal
Debandavam como asas tristes e malferidas
Meu sonho era beijar as nádegas partidas
Ao desvendar o nu daquele ser fatal.

Com mãos fantásticas eu via-me, anjo impuro
Ereto na treva, o ventre despido a meio
Feroz, a mastigar-lhe a carne azul do seio
Sentindo-me ferir no seu corpete duro.

Por fim, sem poder mais, contendo à toa o hausto
Do gozo, corria a chorar para o banheiro
Onde, entre vômitos, o olfato aberto ao cheiro
Acre, masturbava-me até ficar exausto.

Quem jamais poderá dizer o medo louco
O indizível pavor de voltar que me vinha
De transpor a porta, olhar minha avó velhinha
E meu finado avô, que adormecera um pouco.

E entretanto, cheio de angústia, delicado
De angústia, voltava, abria de manso a porta
Incapaz de ferir aquela paz já morta
Com a mais leve emoção de me sentir culpado.

Pobre criança! que Deus implacável fizera
Que perdesse tão cedo as ilusões mais belas
Tu que devias ir viajando entre as estrelas
A cantar e a correr tonto de primavera?!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes







quinta-feira, novembro 22, 2012

Eu tão isósceles, você ângulo. Vê bem onde pisas, pode ser o meu coração.


Eu tão isósceles


Eu tão isósceles
Você ângulo
Hipóteses
Sobre o meu tesão

Teses sínteses
Antíteses
Vê bem onde pises
Pode ser meu coração

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quarta-feira, novembro 21, 2012

Em sua primorosa obra de amor à Poesia*, José Paulo Cavalcanti Filho chegou à conclusão que o poeta tinha 127 heterônimos. E mesmo assim foi "um homem infeliz que sonhou ser tantos - e não conseguiu ser ele próprio".


Tudo quanto penso

Tudo quanto penso
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

*Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, Editora Record, Primeira Edição, 2011.

segunda-feira, novembro 19, 2012

Logo após a derrubada da ditadura salazarista, Sophia de Mello Breyner já se revolta contra os capitalistas da palavra que querem se aproveitar da Revolução dos Cravos. E sua revolta está carregada de fúria e raiva.


Com fúria e raiva

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu  porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

domingo, novembro 18, 2012

Na cidade adormecida primavera vem chegando. E Mario Quintana convida todos para que dancem com ele até não mais saber-se o motivo.


Canção da Primavera

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do cata-vento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!

Mario Quintana
(1906-1994)

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sexta-feira, novembro 16, 2012

Para Affonso Romano de Sant'Anna, o mistério nunca termina. Começa do joelho para cima e do umbigo para baixo.


O mistério

O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

quarta-feira, novembro 14, 2012

Sob a leve tutela de deuses descuidosos, Ricardo Reis da verdade não quer mais que a vida. Pois os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade.


Sob a leve tutela

Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.

Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.

Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade.


Ricardo Reis,
um dos heterônimos de Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa



terça-feira, novembro 13, 2012

Só alice com alice se parece. Assim é a Alice de Leminski.


Alice

ali

ali
se

se alice
ali se visse
quando alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

segunda-feira, novembro 12, 2012

Desabusado, Antônio Jerônimo pediu, só por debique, um tostão de chuva a "padim" padre Cícero. E foi atendido, veio uma trovoada enorme, que matou até o seu cavalo cardão.


Tostão de chuva

Quem é Antonio Jerônimo? É o sitiante
Que mora no Fundão
Numa biboca pobre. É pobre. Dantes
Inda a coisa ia indo e ele possuía
Um cavalo cardão.
Mas a seca batera no roçado...
Vai, Antônio Jerônimo um belo dia
Só por debique de desabusado
Falou assim: "Pois que nosso padim
Pade Ciço que é milagreiro, contam,
Me mande um tostão de chuva pra mim".
Pois então nosso "padim" padre Cícero
Coçou a barba, matutando, e disse:
"Pros outros mando muita chuva não,
Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo
Vou mandar um tostão".
No outro dia veio uma chuva boa
Que foi uma festa pros nossos homens
E o milho agradeceu bem. Porém
No Fundão veio uma trovoada enorme
Quem numa átimo virou tudo em lagoa
E matou o cavalo de Antônio Jerônimo.
Matou o cavalo.

Mário de Andrade
(1892-1945)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

domingo, novembro 11, 2012

Sede assim, qualquer coisa serena, isenta, fiel. Não como o resto dos homens, avisa Cecília Meireles.


Sugestão

Sede assim - qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim - qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.

Cecília Meireles

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sexta-feira, novembro 09, 2012

O navio desatraca. E Ana Cristina Cesar ainda o escuta folhear os últimos poemas com metade de um sorriso.


Ultimo adeus II

O navio desatraca
imagino um grande desastre sobre a terra
as lições levantam vôo,
agudas
pânicos felinos debruçados na amurada.

E na deck-chair
ainda te escuto folhear os últimos poemas
com metade de um sorriso.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

quinta-feira, novembro 08, 2012

Ah, Lisboa com suas casas de várias cores. E, à força de ser ele, Álvaro de Campos dorme e esquece que existe.


Lisboa com suas casas

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força do diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força do monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quarta-feira, novembro 07, 2012

Cesário Verde quer aquela senhora inglesa porque odeia as carnações redondas. E como Balzac eternizou-lhe a singular beleza, ele tem o francês como seu rival.


Frígida

I

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.
II
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Expõe a majestade austera dos invernos.
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.
III
Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
N'uma das mãos franzindo um lenço de cambraia!…
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!
IV
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei d'uma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e as palidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!
V
Pudesse-me eu prostrar, n'um meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E trêmulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!…
VI
Cintila no seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda d'um fantasma.
VII
Metálica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinção que fere,
As curvas de magreza e o lustre dos adornos!
VIII
Deslise como um astro, uma astro que declina;
Tão descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão d'uma corveta fina
Que nobremente vá n'um mar de calmaria.
IX
Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
E, ao, persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!
X
O seu vagar oculta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.
XI
Porém, não arderei aos seus contatos frios,
E não me enroscará nos serpentinos braços:
Receio suportar febrões e calefrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.
XII
E se uma vez me abrisse o colo transparente,
E me osculasse, emfim, flexível e submisso,
Eu julgaria ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!

Cesário Verde
(1855-1886)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

terça-feira, novembro 06, 2012

Para Florbela Espanca, tudo é vaidade neste mundo vão, até os beijos de amor. Beijos que vão de boca em boca como pobres que vão de porta em porta.


Para quê?

Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos d'amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só acredita neles quem é louca!
Beijos d'amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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segunda-feira, novembro 05, 2012

Ao ver escoar-se a vida humanamente em suas águas certas, Mário de Sá-Carneiro hesita. E detém-se às vezes na torrente das coisas geniais em que medita.


Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente 
Em suas águas certas, eu hesito, 
E detenho-me às vezes na torrente 
Das coisas geniais em que medito. 

Afronta-me um desejo de fugir 
Ao mistério que é meu e me seduz. 
Mas logo me triunfo. A sua luz 
Não há muitos que a saibam refletir. 

A minh'alma nostálgica de além, 
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto, 
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto 
Que tenho a força de sumir também. 

Porque eu reajo. A vida, a natureza, 
Que são para o artista? Coisa alguma. 
O que devemos é saltar na bruma, 
Correr no azul à busca da beleza. 

É subir, é subir além dos céus 
Que as nossas almas só acumularam, 
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus 
Que as nossas mãos de auréola lá douraram. 

É partir sem temor contra a montanha 
Cingidos de quimera e d'irreal; 
Brandir a espada fulva e medieval, 
A cada hora acastelando em Espanha. 

É suscitar cores endoidecidas, 
Ser garra imperial enclavinhada, 
E numa extrema-unção d'alma ampliada, 
Viajar outros sentidos, outras vidas. 

Ser coluna de fumo, astro perdido, 
Forçar os turbilhões aladamente, 
Ser ramo de palmeira, água nascente 
E arco de ouro e chama distendido... 

Asa longínqua a sacudir loucura, 
Nuvem precoce de subtil vapor, 
Ânsia revolta de mistério e olor, 
Sombra, vertigem, ascensão--Altura! 

E eu dou-me todo neste fim de tarde 
À espira aérea que me eleva aos cumes. 
Doido de esfinges o horizonte arde, 
Mas fico ileso entre clarões e gumes!... 

Miragem roxa de nimbado encanto-- 
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço! 
Alastro, venço, chego e ultrapasso; 
Sou labirinto, sou licorne e acanto. 

Sei a Dist
ância, compreendo o Ar; 
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; 
Sou taça de cristal lançada ao mar, 
Diadema e timbre, elmo rial e cruz... 
.................................................... 
....................................................

O bando das quimeras longe assoma... 

Que apoteose imensa pelos céus! 
A cor já não é cor- é som e aroma! 
Vem-me saudades de ter sido Deus... 

....................................................
Ao triunfo maior, avante pois! 
O meu destino é outro--é alto e é raro. 
Unicamente custa muito caro: 
A tristeza de nunca sermos dois...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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domingo, novembro 04, 2012

Em 1956, irritado com algumas mazelas do Rio, Drummond ameaçou ir no rumo de Brasília. E foi? Foi não.


Destino Brasília

Vou no rumo de Brasília,
não é aqui meu lugar.
A liberdade, no exílio, 
já começa a definhar.

Já não posso ouvir meu rádio
dizer as coisas comuns.
Lá fundarei uma arcádia
e comerei jerimuns.

Lá não chegam portarias
do titular da Viação.
Lá correm livres os rios
e livre é meu coração.

Sobe o imposto de consumo?
Ônibus mais caro, trem?
Lá, sem condução alguma,
sento no chão com meu bem.

Vou no rumo de Brasília,
para bem longe do mar.
A selva é meu domicílio,
tão mais fácil de habitar.

Adeus, fumaça, adeus, fila,
adeus, carro matador.
Prefiro orquestra de grilo
ao silêncio do censor.

Se a lei contra a imprensa pega, 
jornal vira boletim
meteorológico, cego,
surdo, mudo, chocho enfim.

Escola? a da natureza.
Prato do dia? Arganaz.
Vou redescobrir, surpreso,
no mato, a prístina paz.

Vou no rumo de Brasília,
que o Rio está de amargar.
Da inquisição o concílio
me proíbe até pensar.

Se o Governo vai malito
e pensa que vai melhor,
quem mais lhe desmancha a fita
de pobre vestida à Dior?

Se chamo alguém de plagiário
(provando-o) me salta a lei:
Direto à Penitenciária,
por injúria grave? Eu sei.

Ladinos do bairro Fátima,
inocentes do Leblon,
que resta - dizei, num átimo -
salvo Glorinha Drummond?

Vou no rumo de Brasília,
o Catete vai ficar.
Se ele for, eu rogo auxílio
a Exu, monarca do ar.

Em Brasília ninguém tenta
espalhar promessa vã.
Transporte? ao tapa do vento,
monto na besta alazã.

É seu maior privilégio
a vida sem pose, ao sol,
a simplicidade egrégia
da selva como lençol...

Orquídea, lontra, cachoeiro
em sussurro musical.
Não há, nem de brincadeira,
Polícia Municipal.

Vou no rumo de Brasília,
e para me deliciar,
levo meu compadre Emílio Moura, 
de brando falar.

Cyro, Cruls, Gilberto Amado,
Aníbal, mago sutil,
Rodrigo M. F., apurada
essência do meu Brasil.

Não são fantasias bobas:
Portinari e seu pincel;
em vez de Orfeu, Vila-Lobos.
Bandeira - of course - : Manuel.

E amigos, amigas, certa
saudade do que era azul,
pois mesmo longe está perto
meu norte - da Zona Sul.

Vou no rumo de Brasília.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade


quinta-feira, novembro 01, 2012

Não, não e não. O impossível na poesia de Abgar Renault.


Soneto do impossível

Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta
das sílabas que beijam tuas asas,
nem a curva em que morre a ardente seta,
nem tanta eternidade em horas rasas.

Não medirás a bêbeda corola
que abriste no final do meu sorriso,
nem tocarás o mel que canta e rola
na insônia sem estradas onde piso.

Não saberás o céu construído a fogo,
que tua jovem chave cerra e empana,
nem os braços de espuma em que me afogo.

Não verão os teu olhos quotidiana
a minha morte de homem embebida
no flanco de ouro e luar da tua vida.

Abgar Renault
(1901-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

quarta-feira, outubro 31, 2012

Para Miguel Torga, aquela luz maluca na noite, coração que palpita por tudo o que há de vir, ninguém vê, ninguém crê. Senão quem teve o desespero de partir.


Farol

Luz maluca na noite, coração
Que palpita por tudo o que há de vir:
Ninguém te vê, ninguém te crê, senão
Quem teve o desespero de partir.

Quem se venceu na própria solidão,
E num frágil veleiro quis abrir
O mar salgado de uma condição
Onde a altura do céu vinha cair.

Quem, afogado em pranto, reconhece
No teu aceno inquieto e tutelar
Outra vida mais larga que amanhece,

Fresca de pressentir e germinar,
Lá numa praia branca onde apodrece
Quem nela só consegue naufragar.

Miguel Torga 
(1907-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

terça-feira, outubro 30, 2012

Dedicado a Murilo Mendes, Cassiano Ricardo escreveu o poema Indômitus. E trinta pombos azuis em formação geométrica voltarão ao navio.


Indômitus


O mar é uma esmeralda suja.
Recifes de coral repontam como flores de sangue salpicado de espuma.
(Coisa que explica naturalmente sangue róseo dos náufragos.)

As espadas dos peixes aguerridos
(os espadartes) trançam cintilações de prata
em campo blau, como num escudo.
O escudo de Netuno contra o casco do Indômitus.
A arte de navegar entre espadas
não é tão fácil, senão a mais oscilante das
artes.

Não consta da rosa-dos-ventos...
Se bem que uma rosa-dos-ventos é rosa
mas apenas no nome.
Antes, a chamaremos de mal-me-quer
até Dunquerque.

Indômitus está dançando agora entre duas espécies de estrelas.

A hora não é pra considerações em torno do
que possa acontecer.

É a hora do sangue-frio. Porque os peixes,
como os capitães, são animais de sangue-frio.

A hora é do vento
pela proa, ou a maubordo (não bombordo).
Nasce uma flor no mastro, um flama (não flâmula).
Indômitus então navega em plena rosa cega.

Uma fulguração súbita escreve no ar uma frase.
Thamuz, Thamuz, panmegas tethneka. Fulmotondro.
O comandante está dizendo à sua maruja que não há
no dicionário uma palavra mas bonita do que arquipélago.

Trinta pombos azuis em formação geométrica voltarão ao navio.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

segunda-feira, outubro 29, 2012

Manuel Bandeira confessa a seu tudo, sua amada e sua amiga que gosta pouco do amor ideal objeto só. E que do amor só carnal não gosta.


Soneto sonhado

Meu tudo, minha amada e minha amiga,
Eis, compendiada toda num soneto,
A minha profissão de fé e afeto,
Que à confissão, posto aos teus pés, me obriga.

O que n'alma guardei de muito antiga
Experiência foi pena e ansiar inquieto.
Gosto pouco do amor ideal objeto
Só, e do amor só carnal não gosto miga.

O que há de melhor no amor é iluminância,
Mas, ai de nós! não vem de nós. Viria
De onde? Dos céus?... Dos longes de distância?...

Não te prometo os estos, a alegria,
A assunção...Mas em toda circunstância
Ser-te-ei sincero como a luz do dia.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

domingo, outubro 28, 2012

No fim de um arremedo de amor, Alexander Search diz adeus. E ainda pergunta: será que devo sorrir diante disso, ou não?


Eu desejei tantas vezes que este arremedo de amor

Eu desejei tantas vezes que este arremedo de amor
Entre nós findasse agora.
Mas nem para mim mesmo consigo fingir
Que uma vez chegado este fim eu chegaria a uma felicidade plena.

Tudo é também partida.
Nosso dia mais feliz também nos torna um dia mais velhos.
Para alcançar as estrelas, temos que ter também a escuridão.
A hora mais fresca é também a mais fria.

Não ouso hesitar em aceitar
Sua carta de separação, no entanto, desejo
Com vago sentimento de ciúme que mal posso rejeitar

Que nos caberia ainda um caminho diferente.
Adeus! Será que devo sorrir diante disso, ou não?
O sentimento agora perde-se em meus pensamentos.

Alexander Search, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sexta-feira, outubro 26, 2012

Para Guilherme de Almeida, infeliz de quem passa no mundo procurando no amor felicidade. A mais linda ilusão dura um segundo e dura a vida inteira uma saudade.


Amor, felicidade

Infeliz de quem passa no mundo,
procurando no amor felicidade:
a mais linda ilusão dura um segundo,
e dura a vida inteira uma saudade.

Taça repleta, o amor, no mais profundo
íntimo, esconde a jóia da verdade:
só depois de vazia mostra o fundo,
só depois de embriagar a mocidade...

Ah! quanto namorado descontente,
escutando a palavra confidente
que o coração murmura e a voz diz,

percebe que, afinal, por seu pecado,
tanto lhe falta para ser amado,
quanto lhe basta para ser feliz!

Guilherme de Almeida
(1890-1968)

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quinta-feira, outubro 25, 2012

Luís Vaz de Camões discorda de quem diz que amor é falso ou enganoso. Para ele, amor é brando, doce e piedoso.


Quem diz que Amor é falso ou enganoso 

Quem diz que Amor é falso ou enganoso, 
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, 
Sem falta lhe terá bem merecido 
Que lhe seja cruel ou rigoroso. 

Amor é brando, é doce, e é piedoso. 
Quem o contrário diz não seja crido; 
Seja por cego e apaixonado tido, 
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem; 
Em mim mostrando todo o seu rigor, 
Ao mundo quis mostrar quanto podia. 

Mas todas suas iras são de Amor; 
Todos os seus males são um bem, 
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

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