quarta-feira, novembro 30, 2011

Para Oswald de Andrade, desde Bilac somos internacionalistas e portugueses júniors. E desde a Prosopopéia somos brasileiros.


Estrondam em ti as iaras

Desde Bilac
Somos internacionalistas e portugueses júniors
Gostamos de Camembert, do Nilo, de Frinéia e de Marx
Carvões do mar
Náufragos entre sustos e paisagens
- "I don't know my elders!".
Desde Gonzaga
Somos pastores e desembargadores
Desde a Prosopopéia
Somos brasileiros.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

terça-feira, novembro 29, 2011

Da filha do rei Manuel Bandeira só viu a cor dos cabelos. O seu corpo ele jamais conhecerá.


A filha do rei
 
Aquela cor de cabelos
Que eu vi na filha do rei
- Mas vi tão subitamente -
Será a mesma cor da axila,
Do maravilhoso pente?
Como agora o saberei?
Vi-a tão subitamente!
Ela passou como um raio:
Só vi a cor dos cabelos.
Mas o corpo, a luz do corpo?...
Como seria o seu corpo?...
Jamais o conhecerei!
 
Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

segunda-feira, novembro 28, 2011

Dormes, que penso e mensagens tristes lhe envio. Pensamentos, nada mais, diz Cecília em seu acalanto.



Acalanto

Dorme, que eu penso.
Cada qual assim navega
pelo seu mar imenso.
Eatarás vendo. Eu estou cega.
Nem te vejo nem a mim.
No teu mar, talvez se chega.
Este, não tem fim.
Dorme, que eu penso.
Que eu penso neste navio
clarividente em que vais.
Mensagens tristes lhe envio.
Pensamentos - nada mais.

Cecília Meireles
(1901-1964)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

domingo, novembro 27, 2011

Drummond tem apenas duas mãos e o sentimento do mundo. E sabe que ficará sozinho em um amanhecer mais noite que a noite.



Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não dosseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, novembro 26, 2011

Enre os pequenos e os grandes lábios, os sábios ainda discutem se amor é troca ou entrega louca. Leminski também.



Donna mi priega 88

se amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios
no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?
a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cinco mil sentidos
está livre de mal-entendidos?

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quinta-feira, novembro 24, 2011

Eu me vou, estou triste, mas sempre estou triste. Do seu coração me diz adeus uma criança e eu lhe digo adeus, na dor de Pablo Neruda.



Farewell
                        
1
Desde el fondo de ti, y arrodillado,
un niño triste, como yo, nos mira.
Por esa vida que arderá en sus venas
tendrían que amarrarse nuestras vidas.
Por esas manos, hijas de tus manos,
tendrían que matar las manos mías.
Por sus ojos abiertos en la tierra
veré en los tuyos lágrimas un día.

2
Yo no lo quiero, Amada.
Para que nada nos amarre
que no nos una nada.
Ni la palabra que aromó tu boca,
ni lo que no dijeron las palabras.
Ni la fiesta de amor que no tuvimos,
ni tus sollozos junto a la ventana.

3
(Amo el amor de los marineros
que besan y se van.
Dejan una promesa.
No vuelven nunca más.
En cada puerto una mujer espera:
los marineros besan y se van.
Una noche se acuestan con la muerte
en el lecho del mar.

4
Amo el amor que se reparte
en besos, lecho y pan.
Amor que puede ser eterno
y puede ser fugaz.
Amor que quiere libertarse
para volver a amar.
Amor divinizado que se acerca
Amor divinizado que se va.)

5
Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.
Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.
Fui tuyo, fuiste mía. Qué más? Juntos hicimos
un recodo en la ruta donde el amor pasó.
Fui tuyo, fuiste mía. Tu serás del que te ame,
del que corte en tu huerto lo que he sembrado yo.
Yo me voy. Estoy triste: pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy.
...Desde tu corazón me dice adiós un niño..... 
Y yo le digo adiós.

Pablo Neruda
(1904-1973)

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quarta-feira, novembro 23, 2011

O anteontem de Murilo Mendes sorri sem jeito. E fica nos arredores do que vai acontecer, como menino que pela primeira vez põe calça comprida.


Pós-Poema 

O anteontem - não do tempo mas de mim -
Sorri sem jeito
E fica nos arredores do que vai acontecer
Como menino que pela primeira vez põe calça comprida.

Não se trata de ilusão, queixa ou lamento,
Trata-se de substituir o lado pelo centro.
O que é da pedra também pode ser do ar.
O que é da caveira pertence ao corpo;
Não se trata de ser ou não ser,
Trata-se de ser e não ser.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

terça-feira, novembro 22, 2011

Para te encontrar foi que eu nasci e tem sido vida fora o meu desejo. E agora que te falo, que te vejo, não sei se te encontrei, se te perdi, diz a realidade de Flobela Espanca.


Realidade

Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

Minhas pálpebras são de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...

Tem sido vida fora o meu desejo
E agora que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei...se te perdi...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca


segunda-feira, novembro 21, 2011

A cidade surda de rock não sabe ainda que a garça voltou. E está lá agora na lagoa, real e implausível, como o poema que o Gullar não consegue escrever.


Na Lagoa

A cidade
debruçada sobre
seus afazeres surda
de rock
não sabe ainda
que a garça
voltou.

Faz pouco, longe
daqui entre aves
lacustres a notícia
correu: a lagoa
rodrigo de freitas
está assim de tainhas!
- oba, vamos lá
dar o ar
de nossa graça
disse a garça

e veio:

desceu
do céu azul
sobre uma pedra
do aterro
a branca filha das lagoas

e está lá agora
real e implausível
como o poema
que o gullar não consegue escrever

Ferreira Gullar
(1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar


sábado, novembro 19, 2011

Acabaram-se os tempos e morreram as árvores e os homens. Mas no poema de Ismael Nery para ela, um anjo encontrou dois corpos fortemente enlaçados.



Poema para Ela

Acabaram-se os tempos.
Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.

Ismael Nery
(1900-1934)

Mais sobre Ismael Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ismael_Nery

sexta-feira, novembro 18, 2011

Um Bertolt Brecht quase que desconhecido. Por ele mesmo.


Do pobre B.B.

1.
Eu, Bertolt Brecht, venho da floresta negra.
Para a cidade minha mãe me carrregou
Quando ainda vivia no seu ventre. O frio da floresta
Estará em mim até o dia em que eu me for.

2.
Na cidade de asfalto, estou em casa. Recebi
Desde o início todos os sacramentos finais:
Jornais, muito fumo e aguardente. Desconfiado
Preguiçoso e contente - não posso querer mais!

3.
Sou amável com as pessoas. Uso
Um chapéu cartola segundo seu costume.
Digo: São animais de cheiro bem peculiar
E digo: Não faz mal, também tenho esse perfume.

4.
Pelas manhãs, em minha cadeira de balanço
De vez em quando uma mulher faço sentar
E observando-a calmamente lhe digo:
Em mim você tem alguém em quem não pode confiar.

5.
À noite, alguns homens se reúnem à minha volta
E entre nós, "gentleman" é o tratamento vigente.
Colocam os pés sobre a minha mesa
Dizem: As coisas vão melhorar. E eu não pergunto: Realmente?

6.
Na luz cinzenta da aurora os pinheiros urinam
E seus parasitas, os pássaros, começam o gorjeio.
Por essa hora eu na cidade entorno a bebida
Jogo fora o charuto e vou dormir com receio.

7.
Habitamos uma geração fácil
Em casas que acreditávamos eternas
(Assim construímos aquelas imensas caixas na ilha de Manhattan
E as antenas cujos sinais cruzam o mar como invisíveis lanternas).

8.
Destas cidades ficará: o vento que por elas passa!
A casa faz alegre o conviva: ele a esvazia.
Sabemos que somos fugazes
E depois nada virá, somente poesia.

9.
Nos terremotos que virão tenho esperança
De não deixar meu "Virginia" apagar com amargura
Eu, Bertolt Brecht, chegado há tempo na selva de asfalto
No ventre de minha mãe, vinda da floresta escura.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brechet em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht


quinta-feira, novembro 17, 2011

Mas, pergunta Mario Quintana, haverá maior poesia do que este meu desesperar-me eterno da poesia? E ela só queria que o poeta falasse de "poesia" um pouco mais...


Querias que eu falasse de "poesia"

Querias que eu falasse de "poesia" um pouco
mais...e desprezasse o quotidiano atroz...
querias...era ouvir o som da minha voz
e não um eco - apenas - deste mundo louco!

Mas quê te dar, pobre criança, em troco
de tudo que esperavas, ai de nós:
é que eu sou oco...oco...oco...
como o Homem de Lata do "Mágico de Oz"!

Tu o lembras, bem sei...ah! o seu horror
imenso às lágrimas...Porque decerto se enferrujaria...
E tu...Como um lírio do pântano tu me querias,
como uma chuva de ouro a te cobrir devagarinho,
um pássaro de luz...Mas haverá maior poesia

do que este meu desesperar-me eterno da poesia?!

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

quarta-feira, novembro 16, 2011

Manuel Bandeira sente saudades do seu querido Recife. Um Recife morto, bom, brasileiro, como a casa do seu avô.


Evocação do Recife


Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras,
mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

Coelho sai!
Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)

De repente
nos longos da noite
um sino

Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
......onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora
......onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu

Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe
- Capiberibe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido

Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam

Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.

Manoel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

domingo, novembro 13, 2011

Fernando Pessoa sente o peso de haver o mundo. E a tristeza de estar o sonho triste que há rente entre sonhar e sonhar.



O peso de haver o mundo

Passa no sopro da aragem
Que um momento o levantou
Um vago anseio de viagem
Que o coração me toldou.

Será que em seu movimento
A brisa lembre a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembre o ar livre da ida?

Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O sonho triste que há rente
Entre sonhar e sonhar...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


sábado, novembro 12, 2011

Adélia Prado não queria palavras para rezar. Para ela, bastava ser um quadro bem na frente de Deus pra Ele olhar.


A pintora

Hoje de tarde
pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas
e comecei a chorar,
até me lembrar de que podia
falar sem mediação com o próprio Deus
daquela coisa vermelho-sangue, roxo-frio, cinza.
Me agarrei aos seus pés:
Vós sabeis, Vós sabeis,
só Vós sabeis, só Vós.
O bagaço da laranja, suas sementes
me olhavam da casca em concha
na mão seca.
Não queria palavras pra rezar,
bastava-me ser um quadro
bem na frente de Deus
pra Ele olhar.

Adélia Prado
(1935)

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sexta-feira, novembro 11, 2011

Por quê? Drummond e os porquês do seu amor maior.


Porque

Amor meu, minhas penas, meu delírio,
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá uma alma,
sabendo embora ser perdido intento

o de cingir-se forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes,
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.

Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não me libertas de teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,

por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
e fazer dessa chaga meu prazer?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

quinta-feira, novembro 10, 2011

Carlos Nejar tem a crença de que ainda será eterno. Só não sabe quando.


Crença

Ainda serei eterno.
Não sei quando.
Sei que a sombra se alonga
e eu me alongo,
bólide na erva.

Ainda serei eterno.
Tenho ânsias cativas
no caderno. Cortejo
de símbolos, navios
e nunca mais me encerro
no meu fio.

Ainda serei eterno.
O mês finda, o ano,
o recomeço.
E o fraterno em mim
quer campo, monte, algibe.
Mas sou pequeno
para tanto aceno.

Metáforas me prendem
o eterno
que se pretende isento.

Numa dobra me escondo;
Noutra, deito.
Os nomes me percorrem no poente.
Sou sobrevivente
de alguma alta esfera
que saía de si mesma
e é primavera.

O eterno ainda será viável
como o sol, o dia,
o vento,
misturado ao que me entende
e transborda.
Misturado ao permanente
que me sobra.  

Carlos Nejar
(1939)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

quarta-feira, novembro 09, 2011

Augusto Frederico Schmidt sabe que está morta a estrela que foi para o seu coração como o pecado para os santos. E como a ausência de Deus para os condenados.


Estrela morta

Morta a Estrela que um dia, solitária,
Nasceu em céu sem termo.
Morta a Estrela que floriu nos meus olhos.
Morta a Estrela que olhei na noite erma.
Morta a Estrela que dançou diante dos nossos olhos,
A Estrela que descendo acendeu este amor
Morta a Estrela que foi para o meu coração,
Como a neve para os ninhos
Como o pecado para os santos
Como a ausência de Deus para os condenados.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt


terça-feira, novembro 08, 2011

O homem de lata de Manoel de Barros é muitos. E se faz um corte na boca para escorrer todo o silêncio dele.


O homem de lata

O homem de lata
arboriza por dois buracos
no rosto

O homem de lata
é armado de pregos
e tem natureza de enguia

O homem de lata
está na boca de espera
de enferrujar

O homem de lata
se relva nos cantos
e morre de não ter um pássaro
em seus joelhos

O homem de lata
traz para a terra
o que seu avô
era de lagarto

o que sua mãe
era de pedra
e o que sua casa
estava debaixo de uma pedra

O homem de lata
é uma condição de luta
e morre de lata

O homem de lata
tem beirais de rosa
e está todo remendado de sol

O homem de lata
é um iniciado em abrolhos
e usa desvio de pássaro
nos olhos

No homem de lata
amurou-se uma lesma
fria
que incide em luar

Para ouvir o sussurro
do mar
o homem de lata
se increve no mar

O homem de lata
se devora de pedra
e de árvore

O homem de lata
é um passarinho
de viseira:
não gorjeia

Caído na beira
do mar
é um tronco rugoso
e cria limo
na boca

O homem de lata
sofre de cactos
no quarto

O homem de lata
se alga
no Parque

O homem de lata
foi atacado de ter folhas
e se arrasta
em seus ruídos de relva

A rã prega sua boca
irrigada
no homem de lata

O homem de lata
infringe a lata
para poder colear
e ser viscoso

O homem de lata
empedra em si mesmo
o caramujo

O hoemm de lata
anda fardado de camaleão

O homem de lata
se faz um corte
na boca
para escorrer
todo o silêncio dele

O homem de lata
esta a fim
de árvore

O homem de lata
é uma caso
de lagartixa

O homem de lata
é rosto amoroso
de pessoa

O homem de lata
está todo estragado
de borboleta

O homem  de lata
foi marcado a ferro e fogo
pela água.

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros






segunda-feira, novembro 07, 2011

Se me amasses eu me transformaria no que sou. É o que tem a dizer Murilo Mendes ao anjo que precisa de outro anjo e ao espírito que vai anunciar e ao mesmo tempo espera ser anunciado.



Fantasia

1
Anjo que precisa de outro anjo,
Espírito que vai anunciar
E ao mesmo tempo espera ser anunciado.

Anjo que segura a palma de seus braços
E se contempla, desdobrando-se ao espelho.

Anjo felino que desconcerto entre sua forma e sua fôrma!

Regressa com as órbitas vazias
Até que possa conhecer-se um dia.

2.
És de espuma e seda,
És ao mesmo tempo centelha,
Forma futura do que advinhei em sonho.

Observo eternamente
O Horizonte convexo
Espiando chegares desdobrada em asa.

Se me amasses
Eu me transformaria no que sou.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes


domingo, novembro 06, 2011

O coração de Saramago não é de ferro. O dele, fizeram-no de carne e sangra todo dia.


Coração de ferro 

Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.

José Saramago
(1922-2010)

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

sábado, novembro 05, 2011

Para António Gedeão, cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos, Don Quixote vê gigantes.



Os meus olhos 

Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

António Gedeão 
(1906-1997)

 Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gede%C3%A3o

sexta-feira, novembro 04, 2011

Ana Cristina Cesar em um encontro de assombrar na Catedral. Frente a frente, com os olhos, dizendo, com os olhos, do silêncio que não é mudez.



Encontro de assombrar na Catedral  

Frente a frente, derramando enfim todas as
palavras , dizemos, com os olhos, do silêncio
que não é mudez.
E não toma medo desta alta compadecida
passional, desta crueldade intensa que te
toma as mãos.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

quinta-feira, novembro 03, 2011

Não te fies do tempo nem da eternidade. Apressa-te, amor, que amanhã eu morro e não te digo, pede Cecília em uma de suas canções.



Canção 

Não te fies do tempo nem da eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime, o lábio,
limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Ceília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

quarta-feira, novembro 02, 2011

O instante é tudo para Paulo Mendes Campos. Em seus olhos, o tempo é uma cegueira e a eternidade uma bandeira aberta em céu azul de solidões.



Tempo e eternidade 

O instante é tudo para mim que ausente
Do segredo que os dias encadeia
Me abismo na canção que pastoreia
As infinitas nuvens do presente.

Pobre do tempo, fico transparente
À luz desta canção que me rodeia
Como se a carne se fizesse alheia
À nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
E a minha eternidade uma bandeira
Aberta em céu azul de solidões.

Sem margens, sem destino, sem história
O tempo que se esvai é minha glória
E o susto de minh'alma sem razões.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

terça-feira, novembro 01, 2011

Mia Couto não se acha velho, não. Estardecido, talvez, antigo, sim.


A adiada enchente 

Velho, não.
Entartecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque  a vida,
tantas vezes, se demorou
E eu a esperei
como um rio agurda a cheia.

Mia Couto
(1955)

Mais sobre Mia Couto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mia_Couto