segunda-feira, outubro 31, 2011

Por muito tempo, Drummond achou que ausência é falta. E que falta nós sempre vamos sentir de Drummond.


Ausência


Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, esta ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Alexander Search teve uma revelação não do alto mas de baixo, quando a saia dela por um momento levantou. E não teve palavras para bem descrever a vista.



Em um tornozelo

Tive uma revelação não do alto
Mas de baixo, quando a vossa saia por um momento levantou
Traiu tal promessa que não tenho
Palavras para bem descrever a vista.

E mesmo se o meu verso tal coisa pudesse tentar,
Difícil seria, se a minha tarefa fosse contemplada.
Para encontrar uma palavra que não fosse mudada
Pela mão fria da Moralidade

Olhar é o bastante: o mero olhar jamais destruiu qualquer mente,
Mas oh, doce senhora, além do que foi visto
Que coisas podem ser adivinhadas ou sugerir desrespeito!

Sagrada não é a beleza de uma rainha.
Pelo vosso tornozelo cheguei a suspeitar
Do mesmo jeito que vós podeis suspeitar do que eu quis dizer.

Alexander Search, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, outubro 30, 2011

A família do burrinho, segundo Oswald de Andrade.



A família do burrinho 

- Vamos Joseph fugir
- Para onde Maria ir
Joseph (jocoso) – shall go to Jundi-aí ai!
- Depressa! Sela o Mangarito
Vamos com o vento Sul
Onde serei cesariada?
- Não presepe
- Tenho medo da vaca
- Não chores darling (terno) Sweepstake de Deus!
Maria – Caí na ilegalidade
Porque modéstia à parte
Trago uma trindade no ventre
Nesse tempo não havia ainda as irmãs Dione
Algumas palavras de inglês conhecendo
A família sagrada partiu
Sem saudades levar
Para as bandas do mar
Vermelho
Na poeira da madrugada
Cruzou um olival
O escaravelho
- Quantas dracmas serão precisas?
Exclamou o castiço esposo
Para esta viagem em torno da lei do mundo
Estamos no século III ou IV da fundação
De Roma
E só tenho “argent de poche”
- Não vá faltar Joseph
- Na verdade Deus ajuda…
(os ricos)
- Sonhei que os serafins
Estão bordando uma estrela surda
Para Herodes não ver
Quero reis magos
Trenzinho e monjolo
E o retrato de Shirley Temple
Porque o menino vem
Este mundo salvar
O vento distribuía algodão pelos açudes
Joseph espancou o burrinho
E riu
- Belo mundo ele vem salvar!
(Já havia naquele tempo
Pouco leite para os bebês)
- Se faltar numerário
Eu carrego na centena do Mangarito
E dou um viva ao faraó Hitler…
(Antes que ele faça comigo
O Progrom que fez com Moisés)
- Oportunista! gritou uma nuvem
Joseph fingiu que não ouvia
- A vida é um buraco
Enquanto não vier Maria
A socialização
Dos meios de produção
- Besta! gritou um anjo
São José seguiu pensando
Que os anjos geralmente são reacionários

Oswald de Andrade
(1890-1954)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

sexta-feira, outubro 28, 2011

O reflexivo Affonso Romano de Sant'Anna adiou. Adeu-se.



Reflexivo 

O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se. 

Affonso Romano de Sant'Anna 
(1937)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

quarta-feira, outubro 26, 2011

Quem é que semeia o vento e colhe a tempestade? Para Vinicius de Moraes, só a mulher amada, o princípio e o fim de todas as coisas.



A brusca poesia da mulher amada (II) 

A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos
astros.
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula
E o elemento verde antagônico. A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen.
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada
Que ilumina a cegueira dos homens. Alta, tranqüila e trágica
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada.
Nascitura. Nascitura da mulher amada
É a mulher amada. A mulher amada é a mulher amada é a mulher
amada
É a mulher amada. Quem é que semeia o vento? – a mulher amada!
Quem colhe a tempestade? – a mulher amada!
Quem determina os meridianos? – a mulher amada!
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada.
Talvegue, estrela, petardo
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada
Quando! E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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terça-feira, outubro 25, 2011

Dorme, dorme o que não foste, o que nunca serás. Dorme, que pena não poder me ver - puro - dormindo, diz a dor de Murilo Mendes.


Dorme

Dorme.
Dorme o tempo em que não podias dormir.
Dorme não só tu,
Prepara-te para dormir teu corpo e teu amor contigo.
Dorme o que não foste, o que nunca serás.
Dorme o incêndio dos atos esquecidos,
A qualidade a distância o rumo do pensamento.

O pássaro magnético volta-se,
As árvores trocam os braços,
O castelo parou de andar.

Dorme.
Que pena não poder me ver - puro - dormindo.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

segunda-feira, outubro 24, 2011

Dói-me quem sou, diz Alberto Caeiro. Para ele, é como se na imensa solidão de uma alma a sós consigo, o coração tivesse cérebro e conhecimento.


Dói-me

Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.

Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer idéia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.

Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
que quis pedir esmola e não ousou.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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domingo, outubro 23, 2011

Nela, Drummond gravou o seu epitáfio. E agora que se separaram, sua morte já não lhe pertence.


No mármore de tua bunda

No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.
Tu a levaste contigo.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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sábado, outubro 22, 2011

E agora Maria?


Drumundana

e agora Maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora Maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

Alice Ruiz
(1946 )

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sexta-feira, outubro 21, 2011

Mortal e navegável. Assim é o amor para Eugénio de Andrade.


O amor

Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
itinerários da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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quinta-feira, outubro 20, 2011

Saramago lembra que os deuses, noutros tempos, eram nossos porque entre nós amavam. Quando castos se tornaram, os homens não souberam e pecaram.


Mitologia

Ou deuses, noutros tempos, eram nossos
Porque entre nós amavam. Afrodite
Ao pastor se entregava sob os ramos
Que os ciúmes de Hefesto iludiam.

Da plumagem do cisne as mãos de Leda,
O seu peito mortal, o seu regaço,
A semente de Zeus, dóceis, colhiam.

Entre o céu e a terra, presidindo
Aos amores de humanos e divinos,
O sorriso de Apolo refulgia.

Quando castos os deuses se tornaram,
O grande Pã morreu, e órfãos dele,
Os homens não souberam e pecaram.

José Saramago
(1922-2010)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, outubro 19, 2011

Para ti foi tudo e toquei no nada. Para ti, de Mia Couto.



Para ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto 

(1955)

Mais sobre Mia Couto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mia_Couto

terça-feira, outubro 18, 2011

Em seu poema perto do fim, Thiago de Mello diz que a morte é indolor. E que o que dói nela é o nada que a vida faz do amor.


Poema perto do fim

A morte é indolor.
O que dói nela é o nada
que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada
e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve
de não ter sido bom.
E no coração, neve.

Thiago de Mello

(1926)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

segunda-feira, outubro 17, 2011

Para Brecht, aquele despedida foi difícil. Falaram do tempo e da permanente amizade, todo o resto seria amargo demais.


A despedida

Nós nos abraçamos.
Eu toco em tecido rico
Você em tecido pobre.
O abraço é ligeiro
Você vai para um almoço
Atrás de mim estão os carrascos.
Falamos de tempo e de nossa
Permanente amizade. Todo o resto
Seria amargo demais.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brechet em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht


domingo, outubro 16, 2011

Que é que vou dizer a você, será que você não entende, será que você é burra? Eu te amo, grita Drummond como o menino diante da mulher que não percebe nada.


Enleio

Que é que vou dizer a você?
Não estudei ainda o código
de amor.

Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.

Fico de olhos baixos
espiando, no chão, a formiga.

Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos ( só isso)
então eu diria:
Eu te amo.

Por enquanto sou apenas o menino
diante da mulher que não percebe nada.

Será que você não entende, será que você é burra?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, outubro 15, 2011

Ismael Nery não quer ser Deus por orgulho, mas por necessidade, por vocação. Esta a grande diferença que ele tem de Satã.


Confissão

Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável,
Crescente,
Eterna,
- De mim que me desprezo e me acredito um nada.

Ismael Nery
(1900-1934)

Mais sobre Ismael Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ismael_Nery

sexta-feira, outubro 14, 2011

Florbela Espanca bebe a Vida, a Vida, a longos tragos. E canta: a Vida, meu Amor, quero vivê-la!


O nosso mundo

Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu olhar eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos...

Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todos fantasmas tristes e pressagos!

A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor!... As nossas bocas juntas!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

quinta-feira, outubro 13, 2011

Já começo a ficar cheio de não saber quando eu falto. De ser, mim, sujeito indireto, desabafa Leminski.


Sujeito indireto

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feita a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

terça-feira, outubro 11, 2011

Na canção da depressão, Mário de Andrade sente estourar no coração devastado o riso da mãe-lua. E na solidão perdeu-se, nunca se alegrará.


Canção

....de árvores indevassáveis
De alma escura sem pássaros
Sem fonte matutina
Chão tramado de saudades
À eterna espera da brisa,
Sem carinhos ...como me alegrarei?

Na solidão solitude
Na solidão entrei.

Era uma esperança alada,
Não foi hoje mas será amanhã,
Há-de ter algum caminho
Raio de sol promessa olhar
As noites graves do amor
O luar a aurora o amor...que sei!

Não solidão, solitude,
Na solidão entrei
Na solidão perdi-me...

O agouro chegou. Estoura
No coração devastado
O riso da mãe-da-lua,
Não tive um dia! uma ilusão não tive!
Ternuras que não me viestes
Beijos que não me esperastes
Ombros de amigos fiéis
Nem uma flor apanhei.

Na solidão, solitude,
Na solidão entrei,
Na solidão perdi-me
Nunca me alegrarei.

Mário de Andrade
(1893-1945)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

segunda-feira, outubro 10, 2011

Carlos Nejar viu o vento lavar as pedras, as noites, as águas. O vento lavou até o vento, mas ficaram as palavras.



Pedra-vento

O vento lavou as pedras,
mas ficaram as palavras.
O vento lavou as pedras
com sabor de madrugada.

O vento lavou as noites,
mas ficaram as estrelas.

O vento lavou a noite
com água límpida e mansa.
Mas não lavou a salsugem.

O vento lavou as águas,
mas não lavou a inocência
que amadurece nas águas.

O vento lavou o vento.

Carlos Nejar
(1939)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

domingo, outubro 09, 2011

Não digas nada, não digas nada, que dizer é nada! Para Fernando Pessoa, outros são os caminhos e as razões.


Não digas nada!

Não digas nada! Que hás de me dizer?
Que a vida é inútil, que o prazer é falso?
Di-lo de cada dia a cadafalso
Ao que ali cada dia vai morrer.
Mais vale não querer.

Sim, não querer, porque querer é um ponto,
Ponto no horizonte de onde estamos,
E que nunca atinges hem achas,
Presos locais da vida e do horizonte
Sem asas e sem ponte.

Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo uma ignorância diluída.
Tudo é esperar à beira de uma estrada
A vinda sempre adiada.

Outros são os caminhos e as razões.
Outra a vontade que os fará seus.
Outros os montes e os solenes céus.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


sábado, outubro 08, 2011

Vem, sem que eu te chame, ou te prometa a vida. E sente que ninguém tem a alma mais guardada e protegida, diz Miguel Torga em hora de amor.



Hora de amor

Vem,
Adormece encostada a este braço
Mais débil do que o teu.
Entrega-te despida
Nas mãos dum homem solitário
Que a maldição não deixa
Que possa nem sequer lutar por ti.
Vem,
Sem que eu te chame, ou te prometa a vida.
E sente que ninguém,
No descampado deste mundo, tem
A alma mais guardada e protegida.

Miguel Torga
(1907-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

sexta-feira, outubro 07, 2011

Para Ledo Ivo, toda vida é breve por mais que ela dure. E toda eternidade não dura um minuto.


Duração

Toda vida é breve
por mais que ela dure
entre a areia e o vento.

Todo amor é leve
mais leve que a neve
que cai sobre a relva.

Toda vida é treva
por mais que a ilumine
a luz de cem velas.

Todo fruto é amargo:
morde-o a morte com
seu único dente.

Toda eternidade
não dura um minuto
na manhã serena.

Ledo Ivo
(1924)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%AAdo_Ivo

quinta-feira, outubro 06, 2011

É tão fundo o silêncio, nem o som da palavra se propaga. José Saramago em seu momento.


É tão fundo o silêncio 

É tão fundo o silêncio entra as estrelas.
Nem o som da palavra se propaga,
Nem o canto das aves milagrosas.
Mas lá, entre as estrelas, onde somos
Um astro recriado, é que se ouve
O íntimo rumor que abre as rosas.

José Saramago
(1922-2010)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, outubro 05, 2011

Eugénio de Andrade lembra que ele ainda era pequeno. E ela já era uma mulher triste.


Eu era pequeno

Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Esta tristeza é ainda
minha.

Mas só ela.
E a laranjeira.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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terça-feira, outubro 04, 2011

Quando morrer e te deixar eu quero nunca te deixar. Quero ficar preso ao teu amanhecer, no compromisso de Oswald de Andrade.


Compromisso

Comprarei
O pincel
Do Douanier
Pra te pintar
Levo
Pro nosso lar
O piano periquito
E o Reader's Digest
Para não tremer
Quando morrer
E te deixar
Eu quero nunca te deixar
Quero ficar
Preso ao teu amanhecer

Oswald de Andrade
(1890-1954)

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segunda-feira, outubro 03, 2011

No mundo vago das idealidades, Augusto dos Anjos afundou suas fantasias. Ele quer partir em busca do Passado e correr em busca do Futuro.


Insânia


No mundo vago das idealidades
Afundei minha louca fantasia;
Cedo atraiu-me a auréola fulgidia
Da refulgência antiga das idades.

Mas ao esplendor das velhas majestades
Vacila a mente e o seu ardor esfria;
Busquei então na nebulosa fria
Das ilusões, sonhar novas idades.

Que desespero insano me apavora!
Aqui, chora um ocaso sepultado;
Ali, pompeia a luz da branca aurora.

E eu tremo entre um mistério escuro:
- Quero partir em busca do Passado,
- Quero correr em busca do Futuro.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

domingo, outubro 02, 2011

Fernando Pessoa diz que mais triste do que o que acontece é o que nunca aconteceu. E que a vida é quanto se perdeu.


Mais triste

Mais triste do que o que acontece
É o que nunca aconteceu.
Meu coração, quem o entristece:
Quem o fez meu?

Na nuvem, vem o que escurece
O grande campo sob o céu.
Memórias? Tudo é o que esquece.
A vida é quanto se perdeu.
E há gente que não enlouquece?
Ai do que em mim me chamo eu!

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, outubro 01, 2011

Em seus arrojos, Cesário Verde diz que seria até capaz de nunca mais sentar às mesas espelhentas do Martinho. Bastava que a amada dos seus loucos desvarios fosse menos soberba e menos fria.


Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignones" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse  amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os céus abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão de fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

Cesário Verde
(1855-1886)

Mais sobre Cesário Verde em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde