quarta-feira, agosto 31, 2011

Oswald de Andrade escreveu um poema sobre os soldados brasileiros que lutaram contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial. E foi bombardeado por parte da crítica, por que será?


Canto do pracinha só

Soldado
Resoluto e pequenino
Do Brasil

Levaste na tua sacola
As cores claras da aurora
Levaste no teu bornal
As  cores quentes do sol
Levaste no teu fuzil
A fúlgida flor de anil
Da bandeira do Brasil
Para o mundo libertar

Nas noites do tombadilho
Quando pávido espiavas
As estrelas no plúmbeo mar
Por sobre o teu capacete
Um cruzeiro de prata
Fazia o sinal da cruz
Que tua mãe ensinou

Da torre negra e sombria
Do teu carro de assalto
Da baioneta calada
Da revolta artilharia
Da asa do teu avião
O facho da liberdade
Crepitou na epopéia
Alçado por tua mão

Pracinha tu és povo
Calejado do Brasil
Carregas como um noivado
A morte no teu fuzil

Agora deita o teu peito
No regaço da pátria
Conta, não fiques mudo
Brigaste em Castelnuovo
Subiste em Montecastelo
Fala do boche sanhudo
Que te encontrou na batalha

Na hora letal e fria
Pegaste o porco nazista
Sangraste o porco fascista
Que pretendeu macular
O teu bocado de pão
O teu bocado de honra
O teu bocado de lar

Vou te contar a história
Do Zé Tedesco e do Fritz
Da Lurdinha e do Lurdão
Que metralhavam o chão
Onde eu estava deitado
A bala zunia pertinho
Matou Carlo e Chiquinho
Quebrou vidro, quebrou pedra
Queria o mundo acabar
Queria o mundo enlutar

Mas eu ouvia baixinho
A voz da Pátria falar

Caminha soldado
Pra frente da luta
Que a luta é vitória
É canto de glória
A morte recria
A morte respeita
Quem sabe lutar

Outros deixaste esperando
No comovido poema do lar

Não tenho família, não tenho
Ninguém pra me desvelar
Sou sozinho no mundo
Não tenho família, não tenho
Ninguém pra me desvelar
Sou sozinho no mundo

Não tenho ninho nem lar
Amargo remôo a pena
Do homem que foi jogado
Na dura roda do azar

Não conheci pai e mãe
Não tenho por quem lutar
Se aqui ficar debruçado
Por mim ninguém vem chorar

Não pracinha querido
Marcha pra frente da luta
A vida dos brasileiros
Depende do teu combate
Faze com que tua pátria
No jogo da confusão
O mundo inteiro arrebate

Nasceste no berço verde
Da terra de Castro Alves
Da terra de Patrocínio
Da terra que não suporta
Os ferros da escravidão

Luta pracinha, luta
Contra toda tirania
Ataca o ódio, a inveja
Dilacera a vilania

Há tanta cobra na terra
Há tanta cobra na mar
Há tanta cobra no mundo
Tanto, tanto Calabar

Não, pracinha dorido
A cobra que está fumando
A todos há de vencer
A todos há de fumar
Tua missão é maior
Que a simples luta da guerra
Tua missão é tirar
Da ruína um mundo melhor

Vou teus irmãos convocar
João, pracinha do Norte
Pedro, pracinha do Sul
Antonio, de Mato Grosso
Ricardo, da Paraíba
Francisco, do Ceará
Negro do cais da Bahia
Mineiro do Sabará
Ofereço-te quarenta e quatro milhões
Novecentos e noventa e nove mil
Novecentos e noventa e nove irmãos

Que mais tu queres, brasileiro?

Conquistastes a atmosfera antes de conquistar a liberdade
Na passarela de Bartolomeu de Gusmão
Bebeste o leite
Dos seringais atolados do Amazonas
O sal que te nutre é do Rio Grande do Norte
A carne que te enrijece é do Rio Grande do Sul
E no deserto antigo de Volta Redonda
Encastelaste as torres metálicas da siderurgia

A Pátria te promete os abraços do porvir
E te oferece a humilde oblata de sua grave realidade

Pátria lavada de lágrimas
Sangrada de suores

Atropelada pelos sicários do latifúndio,
Gravada de rebeldias, de revelações
Pátria dos coronéis que arcabusaram a liberdade
Absurda pátria da mortalidade infantil
Dos patrões que mataram a vida
No seio das operárias tornadas infecundas
Pelas tarefas
Pátria trágica
Que dá maleita, isolamento, saudade e atropelo
E as farturas vertiginosas dos estômagos vazios
O ouro da tua bandeira

Não descora na línfa amarela dos rios
O teu verde não mais significa
A agonia das crianças empaludadas
E teu azul não beija apenas as grossas chagas
Que estrelam os mendigos dos caminhos
A tua noite não desce sempre
Sobre a física dos cortiços
A iluminação melancólica dos parques
E o prumo neutro dos arranha-céus

Pátria majestosa
Desde os Inconfidentes e os Andradas
Os grandes padres rebeldes
Roma, Caneca, Toledo e Rolim
Pátria das musas e das guerrilheiras
Barbara Heliodora, Marília, Anita Garibaldi
Pátria eleita de Tomás Antonio Gonzaga
Pátria dos namorados, dos insubmissos e dos mártires

Fogueira de Antonio José
Alarma de Vida Rica
Proclamação do Ipiranga
Bandeira partida de Copacabana
Muralha queimada do 3º Regimento
Pátria de Luiz Carlos Prestes

Sou Felipe dos Santos
Sou o Zumbi dos Palmares

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade










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