terça-feira, maio 31, 2011

A mulher amada por Vinicius parece a flor colhida, justo no instante de tornar-se rosa. E pergunta a Voz ao poeta, por que deixá-la em haste?



Soneto da rosa tardia

Como uma jovem rosa, a minha amada...
Morena, linda, esgalga, penumbrosa
Parece a flor colhida, ainda orvalhada
Justo no instante de tornar-se rosa.

Ah, porque não a deixas intocada
Poeta, tu que és pai, na misteriosa
Fragrância do seu ser, feito de cada
Coisa tão frágil que perfaz a rosa...

Mas (diz-me a Voz) por que deixá-la em haste
Agora que ela é rosa comovida
De ser na tua vida o que buscaste

Tão dolorosamente pela vida?
Ela é rosa, poeta...assim se chama...
Sente bem seu perfumar...Ela te ama...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

segunda-feira, maio 30, 2011

Nos versos de Cecilia Meireles, a solidão é o mar negro, mais eterno, mais terrível, mais profundo. É uma tristeza sem forma, vem para o mundo e retorna...



Solidão

Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
é o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.

Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrelas.

A noite fecha seus lábios
- terra e céu - guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecilia Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

domingo, maio 29, 2011

Em momento insone e triste, Fernando Pessoa não sabe quem há de ser. E sente que tudo isto lhe parece tudo, mas nada é isto, nada é assim.


Cansa sentir

Cansa sentir quando se pensa
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa.
Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah! nada é isto, nada é assim).

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, maio 28, 2011

Menotti del Picchia sabe que tem uma alma errante. E sente uma estranha delícia em tudo que passa e não dura, em tudo que foge e não pára.


Canção do meu sonho errante

Eu tenho a alma errante
e vago na terra a sonhar maravilhas...

Não paro um momento!
Eu busco irrequieto o meu sonho inconstante
e sou como as asas, as velas, as quilhas,
as nuvens, o vento...

Eu sou como as coisas inquietas: o veio
que canta na leira: a fumaça que voa
na espira que sobe das achas; o anseio
dos longos coqueiros esguios;
a esteira de prata que deixa uma proa
no espelho dos rios.

Ru tenho a alma errante...

Boêmio, o meu sonho procura a carícia
fugace, procura
a glória mendaz e preclara.
Sou como a vela fenícia
ao largo, uma vela distante...

Eu tenho a alma errante....

E me sinto uma estranha delícia
em tudo que passa e não dura,
em tudo que foge e não pára...

Menotti del Picchia
(1892-1988)

Mais sobre Menotti del Picchia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

sexta-feira, maio 27, 2011

Manuel de Barros foi forçado a admitir que viu como o adulto é sensato. Mas só depois que iniciou a sua ascensão para a infância.



Ascensão

Depois que iniciei a minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até a ausência da voz ?
Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo -
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes -
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras coisas do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!

Manuel de Barros
(1916)

Mais sobre Manuel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

quinta-feira, maio 26, 2011

Murilo Mendes sabe como são fundamentais os sofrimentos de segundo plano. Mais o que mesmo lembrar? ah sim, esta arrastada caranguejola da vida.


Poema pessoal

Levanto-me da carruagem de paixões e plumas
Aparentemente guiada pelas irmãs Bronté.

Deu uma tristeza agora nos telhados.

As cigarras sublinham a tarde emparedada,
O trovão fechou o piano.
Surge antecipadamente o arco-íris,
Aliança temporária de Deus com o homem,
Sem a solidez da eucaristia:
Surge sobre encarcerados, órfãos, marginais,
Sobre os tristes e os sem-solução.

Dos quatro cantos de mim mesmo
Irrompe um Dedo terribilíssimo que me acusa
Porque sem os olhar deixo de lado
Os restos agonizantes do mundo.

Transformou-se agora o céu.
Céu patinado, que escureza.
Céu sempre futuro e amargo,
Como são fundamentais
Estes sofrimentos de segundo plano!

Mais o que mesmo lembrar?
Ah sim - esta arrastada caranguejola da vida.


Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quarta-feira, maio 25, 2011

O que eu quero, o que eu amo, o que desejo em ti, é o teu calor animal. De Mario Quintana, em seu bilhete com endereço.


Bilhete com endereço

Mas onde já se ouviu falar
Num amor à distancia,
Num tele-amor?!
Num amor de longe...
Eu sonho é um amor pertinho
Um amor juntinho...
E, depois,
Esse calor humano é uma coisa
Que todos - até os executivos - têm.
É algo que acaba se perdendo no ar,
No vento
No frio que agora faz...
Escuta!
O que eu quero,
O que eu amo,
O que desejo em ti,

É o teu calor animal!...

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

terça-feira, maio 24, 2011

Carlos Nejar diz que o homem é sempre mais forte se a outro homem se aliar. E que por mais que a morte desfaça, há um homem sempre a lutar.


O homem sempre é mais forte

O vento faz seu caminho
onde o sol desemboca o mar,
onde a terra tarja o vinho,
onde a noite é seu lagar.
O vento faz seu caminho
onde os mortos vão deitar
e a noite move moinho,
move outra noite no mar.

O vento faz seu caminho

e pássaros vão pousar
na floração dos moinhos
que amadurecem o mar.

O vento faz seu caminho
onde há sede de plantar,
onde a semente é destino
que um sulco não pode dar.

II

O homem é sempre mais forte
se a outro homem se aliar;
o arado faz caminho
no seu tempo de cavar.

No mesmo mar que nos leva,
o vento nos quer buscar;
o que é da terra é do homem,
onde o arado vai brotar.

Por mais qua a morte desfaça,
há um homem sempre a lutar;
o vento faz seu caminho
por dentro, no seu pomar.

Carlos Nejar
(1939)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

segunda-feira, maio 23, 2011

Quanta mulher no teu passado, tanta sombra em teu redor! Mas, pergunta Florbela, que me importa?


Supremo enleio

Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo à tua porta…
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda…

Florbela Espanca 
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

domingo, maio 22, 2011

Lá se foram todos, um a um, sem prevenir, sem acenar, sem dizer adeus, todos se foram. E Drummond pede desculpas de ser o sobrevivente de um grupo muito antigo.


Declaração em juízo

Peço desculpa de ser
o sobrevivente.
Não por longo tempo, é claro.
Tranquilizem-se.
Mas devo confessar, reconhecer
que sou sobrevivente.
Se é triste/cômico
ficar sentado na platéia
quando o espetáculo acabou
e fecha-se o teatro,
mas triste/grotesco é permanecer no palco,
ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas
e somente baratas
circulam no farelo.

Reparem: não tenho culpa.
Não fiz nada para ser
sobrevivente.
Não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo.
Não matei nenhum dos companheiros.
Se não saí violentamente,
se me deixei ficar ficar ficar,
foi sem segunda intenção.

Largaram-me aqui, eis tudo,
e lá se foram todos, um a um,
sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram.
(Houve os que requintaram no silêncio).
Não me queixo. Nem os censuro.
Decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo,
perplexo,
desentranhado.
Não cuidaram de que um sobraria.
Foi isso. Tornei, tornaram-me
sobre-vivente.

Se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
Viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento.
Calendário do ano próximo.
Jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
Alguma vez os invejei. Outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
duravam, perdurando.
E me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também
viver.

Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. A verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
Desisti. Recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. Agora
sou sobrevivente.

Sobrevivente incomoda
mais que fantasma. Sei: a mim mesmo
incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.
Por mais que me esconda, projeto-me,
devolvo-me, provoco-me.
Não adianta ameaçar-me. Volto sempre,
todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
O dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno.
Estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho:
onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo
sobrevivente
da vida que ainda
não vivi, juro por Deus e o Diabo, não vivi.

Tudo confessado, que pena
me será aplicada, ou perdão?
Desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra.
Nem há técnica
de fazer, desfazer
o infeito infazível.
Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
Cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. Sou o único, entendem?
de um grupo muito antigo
de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos.
Único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar,
a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
como neste momento estou sorrindo
de ser - delícia - sobrevivente.

E esperar apenas, está bem?
que passe o tempo de sobrevivência
e tudo se resolva sem escândalo
ante a justiça indiferente.
Acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender,
nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se
ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, maio 21, 2011

Vem, sem que eu te chame, ou te prometa a vida. E sente que ninguém tem a alma mais guardada e protegida, diz Miguel Torga em hora de amor.


Hora de amor

Vem.
Adormece encostada a este braço
Mais débil do que o teu.
Entrega te despida
Nas mãos dum homem solitário
Que a maldição não deixa
Que possa nem sequer lutar por ti.
Vem,
Sem que eu te chame, ou te prometa a vida.
E sente que ninguém,
No descampado deste mundo, tem
A alma mais guardada e protegida.

Miguel Torga 
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga
em http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

sexta-feira, maio 20, 2011

Vem a ser que o homem novo está na verdade que movo. Para Saramago, se o sagrarem em rei, aceitem a lei que ele faz.


Passo num gesto que eu sei

Passo num gesto que eu sei
Deste mundo agoniado para o espaço
Onde sou quanto serei
No tempo que sobra escasso

No outro mundo sou rei
E o meu rosto de cristal e puro aço
É o espelho que forjei
Com suor pena e cansaço

E se o mundo que deixei
Tem as marcas desenhadas do meu passo
São baralhas que enredei
São teias e vidro baço

Tantas provas cá terei
Tantas vezes do pescoço solto o laço
Se me sagraram em rei
Aceitem a lei que eu faço

Vem a ser que o homem novo
Está na verdade que movo

José Saramago 
(1922-2010)

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quinta-feira, maio 19, 2011

Mário de Andrade se encanta com as duas costureirinhas que vêm pela rua das Palmeiras. Bonitas, Senhor! que até dão vontade pros homens da rua.


Sambinha

Vêm duas costureirinhas pela rua das Palmeiras.
Afobadas braços dados depressinha
Bonitas, Senhor! que até dão vontade pros homens da rua.
As costureirinhas vão explorando perigos...
Vestido é de seda.
Roupa-branca é de morim.

Falando conversas fiadas
As duas costureirinhas passam por mim.
- Você vai?
- Não vou não!
Parece que a rua parou para escutá-las.
Nem trilhos sapecas
Jogam mais bondes um pro outro.

E o Sol da tardinha de abril
Espia entre as pálpebras sapiroquentas de duas nuvens.
As nuvens são vermelhas.
A tardinha cor-de-rosa.

Fiquei querendo bem aquelas duas costureirinhas...
Fizeram-me peito batendo
Tão bonitas, tão modernas, tão brasileiras!
Isto é...
Uma era ítalo-brasileira.
Outra era áfrico-brasileira.
Uma era branca.
Outra era preta.

Mário de Andrade
(1893-1945)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

quarta-feira, maio 18, 2011

Quando tinha seis anos, Manuel Bandeira ganhou um porquinho-da-índia. Para o poeta, o bichinho foi a sua primeira namorada.


 
Link para fazer o download do poema em mp3 do canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/3737379-ba3

Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuek Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

terça-feira, maio 17, 2011

Leminski queria tanto ser um poeta maldito, um poeta social. Em vez, está ele pondo sal numa sopa rala que mal vai dar para dois.



Eu queria tanto

eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

segunda-feira, maio 16, 2011

Sophia de Mello Breyner se perdeu na sordidez de um mundo cruel. Mas se salvou na limpidez da terra.


Eu me perdi

Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar

Sophia de Mello Breyner 
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

domingo, maio 15, 2011

Alberto Caeiro vai onde o vento o leva e não se sente pensar. Assim tem sido sempre a sua vida e assim ele quer que possa ser sempre.


Hoje de manhã

Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia por caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e
Assim quero que possa ser sempre -
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, maio 14, 2011

Para que criar alguém capaz de duvidar da criação? Por que nós e Ele não? Questões levantadas por Alice Ruiz.



Questões III

Se a preguiça é pecado,
o que Deus estará fazendo agora?
Em que se ocupa aquele que tudo pode?
Terá restado algo por fazer
depois que o mundo foi criado?

Se o desejo é fraqueza,
Deus nunca deseja?
Mas se é verdade que nos criou,
algo nele desejou.

Se a vaidade é um erro,
por que nos fez
à sua imagem e semelhança?
Ou terá sido o contrário?

Para que criar alguém
capaz de duvidar da criação?
Por que nós e ele não?


Alice Ruiz
(1946)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz

quarta-feira, maio 11, 2011

Debaixo da escrita de Affonso Romano há sangue em lugar de tinta. E alguém calado que grita.


O duplo

Debaixo da minha mesa
tem sempre um cão faminto
- que me alimenta a tristeza.

Dabaixo da minha cama
tem sempre um fantasma vivo
- que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
- pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
- e alguém calado que grita.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

Para Ferreira Gullar, o canto existe, a flor existe, a morte é triste. Por que motivo pensar na morte?


O meu acalanto

Por que motivo
Verter o pranto?

O canto existe.

Por que motivo
Lembrar a dor?

A flor existe.

Por que motivo
Pensar na morte?

(A morte é triste!)

Ferreira Gullar
(1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

terça-feira, maio 10, 2011

Florbela Espanca se vê triste, abandonada e só. E sente como é triste a hora quando morre, o instante que foge, voa e passa.



Hora que passa

Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura,
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!

Judeu errante que a ninguém faz dó!
Minh'alma triste, dolorida e escura,
Min'alma sem amor é cinza e pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!...
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre...
O instante que foge, voa, e passa...
Fiozinho d'água triste...a vida corre...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

segunda-feira, maio 09, 2011

Carlos Drummond de Andrade tem saudades de uma dama. Que lhe passeava na medula e atomizava os pés da cama.


Tenho saudades de uma dama

Tenho saudades de uma dama
como jamais houve na cama
outra igual, e mais terna amante.

Não era sequer provocante.
Provocada, como reagia!
São palavras só: quente, fria.

No banheiro nos enroscávamos.
Eram flamas no preto favo,
um guaiar, um matar-morrer.

Tenho saudades de uma dama
que me passeava na medula
e atomizava os pés da cama.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

domingo, maio 08, 2011

O Drummond já disse tudo. Não preciso dizer mais nada, não é mãe?



(Para Sylvia Lucia Ramos, minha mãe, falecida em 21.01.2011)


Para sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.

Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino 
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Mulher, tens o divino dom de ser mãe. Em ti está presente a humanidade, no provocador poema de Cora Coralina.



Mãe

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.
Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.
Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em

sábado, maio 07, 2011

Augusto Frederico Schmidt sabe que quando ele morrer a humanidade continuará a mesma. Porque ele nada é, nada conta e nada tem.


Quando eu morrer

Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo,
A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas.
Como as envolve agora neste instante.
O vento fresco dobrará as árvores esguias
E levantará as nuvens de poesia nas estradas...

Quando eu morrer as águas claras dos rios rolarão ainda,
Rolarão sempre, alvas de espuma
Quando eu morrer as estrelas não cessarão de acender-se
no lindo céu noturno,
E nos vergéis onde os pássaros cantam,
As frutas continuarão a ser doces e boas.

Quando eu morrer os homens continuarão sempre os mesmos.
E hão de esquecer-se do meu caminho silencioso entre eles,
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer os prantos e as alegrias não permanecerão.
Quando eu morrer a humanidade continuará a mesma.
Porque nada sou, nada conto e nada tenho.
Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.

Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
Quando eu morrer...

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

sexta-feira, maio 06, 2011

Murilo Mendes visita-se ao espelho sem algemas. Munido de passaporte para este mundo, ou não?


Insônia

Ao longe um cão branquíssimo latindo
Divide a noite em duas.
Se aquele cão fosse negro
Talvez que eu pudesse dormir.

Pressinto uma bomba atômica
Adormecida num bosque.

Vivo ou morto estarei, inculpe ou réu?
Visito-me ao espelho: sem algemas.
Munido de passaporte para este mundo, ou não?

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, maio 05, 2011

Para Alberto Caeiro, quando a erva crescer em cima de sua sepultura, seja este o sinal para lhe esquecerem de todo. Porque a natureza nunca se recorda, e por isso é bela.


Quando a erva crescer 

Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de "interpretar" a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quarta-feira, maio 04, 2011

Para Mario Quintana, quem ama inventa. Ele sabe o bem que faz haver sonhado e ter vivido o sonho.


Quem ama inventa


Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Ó! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes tu o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

terça-feira, maio 03, 2011

Ela pediu um poema em que o amor se exprima, tudo resumindo em palavras. E Nuno Júdice pergunta: mas o que fica nas palavras daquilo que se viveu?


Amor

Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.

Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo...

Nuno Júdice
(1949)

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

domingo, maio 01, 2011

Esta espécie de loucura, que é pouco chamar talento, não me traz felicidade. Porque sempre haverá sol ou sombra na cidade, mas em mim não sei o que há, admite Fernando Pessoa.


Esta espécie de loucura

Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
É que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento.

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa