segunda-feira, agosto 23, 2010

Era manhã de setembro. E Drummond se derretia em gozo com os beijos mais castos da sua amada.



Era manhã de setembro

Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro.

Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro.

O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto

Ela me beijava o membro

Um passarinho cantava,
bem dentro da árvore, dentro
da terra, de mim, da morte

Morte e primavera em ramo
disputavam-se a água clara
água que dobrava a sede

Ela me beijando o membro

Tudo o que eu tivera sido
quando me fora defeso
já não formava sentido

Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama

Ela a me beijar o membro

Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas

Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha

tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio

como beijava uma santa
no mais divino transporte
e num solene arrepio

beijava beijava o membro

Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo

Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta

Ela me beijava o membro

O capítulo do ser
o mistério do existir
o desencontro de amar

eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia

radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa

para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa

e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo

Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em dezembro

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

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