domingo, abril 11, 2010

Do exílio, Thiago de Mello lança seu canto de companheiro em tempo de cuidados. Canta para repartir o que é preciso ser do amor geral.


Canto de companheiro em tempo de cuidados


Contigo, companheiro que chegaste,
desconhecido irmão de minha vida,
reparto esta esmeralda que retive
em meu peito no instante fugitivo
mas infinito em que se acaba a infância,
porque a esmeralda não se acaba nunca.

Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
Porque tudo é chegar, meu companheiro
desconhecido, meu irmão que plantas
o grão no escuro e nasce a claridão.

É chegar e seguir, os dois cantando,
os dois e a multidão num só caminho,
em direção ao sol que nos ensina
a ser mais cristalinos, parecidos
ao menino que fomos e que somos
de novo dentro do homem, desde que o homem
seja capaz de repartir seu canto
e um pedaço de sol bem luminoso
a esse desconhecido ser que chega
sem nada: traz apenas a esperança
de ver o amor de perto. E sem ter canto
no peito machucado, de repente
de coração contigo vai cantando,
e vai na vida, a vida desgraçada,
achando uma fé nova enquanto um gosto
de também repartir-lhe sobe na alma:
está no seu caminho e então reencontra
o menino que foi, quando a esmeralda
perdida no seu peito resplandece
de amor geral que se reparte e cresce.

Não sei se canto claro, companheiro.
Em tua vida vive o o povo inteiro:
antes jamais te vi, mas te sabia
perto de mim, quando aprendi na dor
da queimadura do noturno mundo,
que se alçava voraz contra a alegria
e entranhas devorava e em fome e febre
enrolava a vergonha das mulheres
e pela mão levava sob a lua,
de enferma claridade, as ambulantes
manchas de riso em cujo fundo a infância
era uma rosa sórdida já murcha.

O tempo é de cuidados, companheiro.
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça,
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.
O tempo é de mentira. Não convém
deixar livre o menino da esmeralda.
Melhor é protegê-lo da violência
que amarra a liberdade em pleno vôo.
A sombra já desceu, e muitas fauces
famintas se escancaram farejando.
Cuidado, companheiro, esconde a rosa,
espanta a mariposa colorida,
é perigosa esta canção de amor.

Cada um no seu lugar, na sua vez,
não descuidar na espreita do inimigo,
que não dorme jamais e é cheio de olhos.
E derramar a luz, no instante certo,
sobre a garra soturna do seu rosto.
É uma espera que dói, mas o que vale
é ter o coração por cidadela,
acender uma tocha em cada metro
de terra conquistado e trabalhar
melhor, para que o chão floresça mais
e o trigo erga bem alto o seu pendão
para a festa de amor, larga e geral,
onde a fome afinal não vai dançar,
porque não comerão somente eleitos,
porque são todos os que comerão.
É por isso que estamos todos juntos:
a nossa força tem o sortilégio
da seiva torrencial da primavera,
e o nosso amor palpita como os ímpetos
das águas amazônicas profundas.

É cantar, companheiro, e repartir
o que é preciso ser do amor geral.
Ninguém será sozinho nunca mais,
nem na solidão, nem no poder.

Sempre contigo irei, e é quando canto
que te defendo, e deito em tua lâmpada
um azeite que dura a treva inteira
nesses tempos de cinza em que a vigília,
espada em flama erguida como a rosa,
só poderá cessar quando outra vez,
envergonhada, regressar a aurora,
que vai lavar de luz o chão amado,
e seremos de novo e simplesmente
meninos repartindo as esmeraldas.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

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