quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Para Cecília Meireles, eles vão ouvir o pregão do infortúnio até morrerem o que se pode morrer. Vivos, ouvindo a morte.


Pregão do infortúnio


Não sairemos à rua
para apregoar o infortúnio:
dentro da sombra ficaremos,
debaixo de negros tetos
escarvaremos o silêncio com a nossa
memória.

Escarvaremos o silêncio.

Nossos olhos sem pálpebras
irão crescendo em marés vermelhas.
E a nossa boca sem voz
será uma ferida calma,
inútil no enorme tempo.

No enorme tempo.

O pregão do infortúnio
para nós mesmos o fazemos.
É incomunícável, como todas
as verdades humanas.

Horríveis seremos,
com a face de cinza,
os lábios negros, arena triste
onde os pensamentos se debatem,
desfalecem e morrem em lágrimas.

O pregão do infortúnio
nós mesmos o ouviremos,
incansáveis,
até perdermos as forças.

Até morrermos o que se pode morrer
conservando a vida.

Vivos, ouvindo a morte.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

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