terça-feira, novembro 17, 2009

O rato apareceu num ângulo da sala, um homem e uma mulher apareceram também. E Murilo Mendes criou um lindo poema sobre o viver e o conviver.


O rato e a comunidade


O rato apareceu
Num ângulo da sala.
Um homem e uma mulher
Apareceram também,
Trocaram palavras comigo,
Fizeram diversos gestos
E depois foram-se embora.

?Que sabe esse rato de mim.
E esse homem e essa mulher
Sabem pouco mais que o rato.

Passam meses e anos perto de nós,
Rodeiam-nos, sentam-se com a gente à mesa,
Comentam a guerra, os telegramas,
Discutem planos políticos e econômicos,
Promovem arbitrariamente a felicidade coletiva.
Conhecem nosso paletó, camisa e gravata,
Nosso sorriso e o gesto de mover o copo.
Têm medo de nos tocar, não conhecem nossas lágrimas.
?Que sabem do nosso coração, do nosso desespero, da nossa comunicabilidade.
Que sabem do centro da nossa pessoa, de que são participantes.
...Subúrbios longínquos, esses homens.

Entretanto cada um deve beber no coração do outro.
Todos somos amassados, triturados:
O outro deve nos ajudar a reconstituir nossa forma.
O homem que não viu seu amigo chorar
Ainda não chegou ao centro da esperiência do amor.
Para o amigo não existe nenhum sofrimento abstrato.
Todo o sofrimento é pressentido, é trocado, comunicado.
?Quem sabe conviver o outro, quem sabe transferir o coração.
Ninguém mais sabe tocar na chaga aberta:
Entretanto todos têm uma chaga aberta.

Desconhecido que atravessas a rua,
?Que há de comum entre mim e ti.
A mesma solidão e a mesma roupa.
Procuras consolo, mas não podes parar.
És o servo da máquina e do tempo.
Mal sabes teu nome, nem o que desejas neste mundo.
Procuras a comunidade de uma pessoa,
Mas não a encontras na massa-leviatã.
Procuras alguém que seja obscuro e mínimo,
Que possa de novo te apresentar a ti mesmo.

A mulher que escolhemos, a única e não outra
Dentre tantas que habitam a terra triste,
Esta mesma, frágil e indefesa, bela ou feia,
Eis o mundo que nos é de novo apresentado
Por intermédio de uma só pessoa.
Esta é que rompe as grades do nosso coração,
Esta é a que possuímos mais pela ternura que pelo sexo.
E nada será restaurado no seu genuíno sentido
Se a mulher não retornar ao seu princípio:
É a máquina instalada dentro dela que deveremos vencer.
Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce,
Os homens pelas mãos da antiga mediadora
Abrirão outra vez um ao outro os corações que sangram.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

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