sábado, outubro 31, 2009

Em sua ode, Ricardo Reis diz que tudo é tão pouco, nada se sabe, tudo se imagina. Por isso, circunda-te de rosas, ama, bebe e cala: o mais é nada.


Tão cedo passa


Tão cedo passa tudo quando passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Ela estava dançando, o jazz band tocava, ela olhou demais para Guilherme de Almeida. E um amigo disse ao poeta: -"É assim que essas coisas começam!".


Como essas coisas começam


Era uma vez...Mas eu nem sei como, onde, quando,
por que foi isso. Eu sei que ela estava dançando.
O jazz-band esgarçava o véu de uma doidice.
Ela olhou-me demais - e um amigo me disse:
- "Cuidado! É sempre assim que essas coisas começam!"

Estas frases banais, vazias, me interessam,
porque elas sempre têm, à flor de certas bocas,
a ressonância musical das coisas ocas.

Deixei meu sonho ecoar dentro daquela frase:
e senti, sem querer, necessidade quase
de começar alguma coisa...

Ontem o amigo
- o precioso banal - encontrou-se comigo.
Ele pôs num sorriso esta frase indiscreta:
- " Então, quando é que acaba essa história, meu poeta?"

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

sexta-feira, outubro 30, 2009

Em versos, Cecília Meireles nos mostra como é triste ver-se o homem por dentro. A alma, não.


Anatomia


É triste ver-se o homem por dentro:
tudo arrumado, cerrado, dobrado
como objetos num armário.

A alma, não.

É triste ver-se o mapa das veias,
e esse pequeno mar que faz trabalhar seus rios
como por obscuras aldeias
indo e vindo, a carregar vida, estranhos escravos.

Mas a alma?

É triste ver-se a elétrica floresta
dos nervos: para estrelas de olhos e lágrimas,
para a inquieta brisa da voz,
para esses ninhos contorcidos do pensamento.

E a alma?

É triste ver-se que de repente se imoboliza
esse sistema de enigmas,
de inexplicado exercício,
antes de termos encontrado a alma.

Pela alma choramos.
Procuramos a alma.
Queríamos alma.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meirels em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Nossos inimigos dizem: a luta terminou. Mas nós dizemos: ela começou, ensina Bertolt Brecht em seus versos de luta.


Nossos inimigos dizem


Nossos inimigos dizem: A luta terminou.
Mas nós dizemos: ela começou.

Nossos inimigos dizem: A verdade está liquidada.
Mas nós dizemos: Nós a sabemos ainda.

Nossos inimigos dizem: Mesmo que ainda se conheça a verdade
Ela não pode mais ser divulgada.
Mas nós a divulgamos.

É a véspera da batalha.
É a preparação de nossos quadros.
É o estudo do plano de luta.
É o dia antes da queda
De nossos inimigos.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

quinta-feira, outubro 29, 2009

Depois de tanto ver na vida, Carlos Drummond de Andrade nos ensina que é melhor deixar o mundo existir. Rola mundo, rola, explode, acaba!


Rola mundo


Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
Pávido escutava,
não compreendia.
Talvez avisassem:
mocidade é morta.
Mas a chuva, mas o choro,
mas a cascata caindo,
tudo me atormentava
sob a escureza do dia,
e vendo,
eu pobre de mim não via.

Vi moças dançando
num baile de ar.
Vi os corpos brandos
tornarem-se violentos
e o vento os tangia.
Eu corria ao vento,
era só umidade,
era só passagem
e gosto de sal.
A brisa na boca
me entristecia
como poucos idílios
jamais o lograram;
e passando,
por dentro me desfazia.

Vi o sapo saltando
uma altura do morro;
consigo levava
o que mais me valia.
Era algo hediondo
e meigo: veludo,
na mole algidez
parecia roubar
para devolver-me
já tarde e corrupta,
de tão babujada,
uma velha medalha
em que dorme teu eco.

Vi outros enigmas
à feição de flores
abertas no vácuo.
Vi saias errantes
demandando corpos
que em gás se perdiam,
e assim desprovidas
mais esvoaçavam,
tornando-se roxo,
azul de longa espera,
negro de mar negro.
Ainda se dispersam.
Em calma, longo tempo,
nenhum tempo, não me lembra.

Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão,
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada
uma pomba cega.

Como pois interpretar
o que os heróis não contam?
Como vencer o oceano
se é livre a navegação
mas proibido fazer barcos?
Fazer muros, fazer versos,
cunhar moedas de chuva,
inspecionar os faróis
para evitar que se acendam,
e devolver os cadáveres
ao mar, se acaso protestam,
eu vi; já não quero ver.

E vi minha vida toda
contrair-se num inseto.
Seu complicado instrumento
de vôo e de hibernação,
sua cólera zumbidora,
seu frágil bater de élitros,
seu brilho de pôr de tarde
e suas imundas patas...
Joguei tudo no bueiro.
Fragmentos de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanto me liga ao mundo.
Outras riquezas ocultas,
adeus, se despedaçaram.

Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola mundo, rola,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rolam os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Não canto porque sonho. Canto porque sou homem e porque o meu corpo estremece nos teus braços deslumbrados, diz toda a paixão de Eugénio de Andrade.


Não canto porque sonho


Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
o mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

quarta-feira, outubro 28, 2009

Há mais de cinquenta anos, Manuel Bandeira já sentia saudades do Rio antigo. Hoje, já teria ido embora para Pasárgada há muito tempo.


Saudades do Rio antigo


Vou-me embora pra Pasárgada.
Lá o rei não será deposto
E lá sou amigo do rei.
Aqui eu não sou feliz
A vida está cada vez
Mais cara, e a menor besteira
Nos custa os olhos da cara.
O trânsito é uma miséria:
Sair a pé pelas ruas
Desta capital cidade
É quase temeridade.
E eu não tenho cadilac
Para em vez de atropelado,
Atropelar sem piedade
Meus pedestres semelhantes.
Oh! que saudades que eu tenho
Do Rio como era dantes!
O Rio que tinha apenas
Quinhentos mil habitantes.
O Rio que conheci
Quando vim para cá menino:
Meu velho Rio gostoso,
Cujos dias revivi
Lendo deliciosamente
O livro de Coaraci.
Cidade onde, rico ou pobre
Dava gosto se viver.
Hoje ninguém está contente.
Hoje, meu Deus, todo mundo
Traz na boca a cinza amarga
Da frustração...Minha gente,
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Em versos de muito amor e paixão, Maria Teresa Horta leva a bandeira do orgasmo. E para tão grande amor é curta a vida.


Delírio


É o meu mel
que eu cheiro na tua boca

É no teu pênis
que eu bebo a sede toda

Nos meus lábios abertos
que me vencem
eu nada devagar sem ter vergonha

É a lagoa - eu digo
de veludo

É o grito - eu sei
na raiva solta

É a proa do prazer
sobre o lençol
onde mais tarde vai rebentar a onda

Secreto é o ruído
dos corpos
no embate

Os elmos já depostos pelo chão
caídas as viseiras e as máscaras
o vestido misturado à armação

São fulvos os cavalos
com as patas cor do pó
tropeçando na paz adormecida

Eu levo a bandeira
do orgasmo
E "para tão grande amor é curta a vida".

Maria Teresa Hosta

Mais sobre Maria Teresa Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

terça-feira, outubro 27, 2009

Que grito inútil, que imenso nada, tudo sente Vinicius de Moraes. E pergunta: não é o grito a medida do abismo?


A medida do abismo


Não é o grito
A medida do abismo?
Por isso eu grito
Sempre que cismo
Sobre tua vida
Tão louca e errada...
- Que grito inútil!
- Que imenso nada!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

No belo poema de Sophia Mello Breyner, nunca mais caminharás nos caminhos naturais. E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.


Nunca mais


Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.

Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

segunda-feira, outubro 26, 2009

O menino só queria inventar uma poesia. Para Manoel de Barros, ele não precisa de fazer razão.


Infantil


O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino.
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.

Manoel de Barros

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Em sua cantiga para Tom Jobim, Paulo Mendes Campos diz como se achar no paraíso, perdido. E como achar o poeta, de repente ou devagar.


Cantiga para Tom Jobim


Quem for além simplesmente
desse espelho transparente
há de sumir? ou se ver?
relembrar? ou esquecer?
Quem for além simplesmente
desse espelho transparente
há de sentir? ou sonhar?
prosseguir? ou regressar?
Mas quem acha uma seta
que lhe apontar o sentido
neste espelho, há de se achar
no paraíso, perdido,
onde achará o poeta,
de repente ou devagar.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

domingo, outubro 25, 2009

Fernando Pessoa ama tudo o que foi e tudo o que já não é. E diz que hoje já é outro dia.


Eu amo tudo


Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje já é outro dia.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Em sua canção de mulher e tempo, Mauro Mota procura Guiomar noite e dia. E com esperança, pergunta: para onde foste?


Canção de mulher e tempo


Guiomar, para onde foste?
Te procuro noite e dia:

sobejos de canto e falas
e o cheiro na ventania.

No verde morno do Janga
os rastros de espuma fria.

Bolem no azulejo as sombras
enxutas das mãos na pia

(Jeito de corpo estremece
no lençol que te cobria.)

Guiomar, para onde foste?
Te procuro noite e dia.

Só não te acho em ti mesma
no mistério da agonia:

sumidas cores e carnes
(camuflada autofagia).

Tempo químico tirano,
vinte anos de tirania.
Guiomar, para onde foste?
Só tua voz te anuncia.

Nem a viagem nem a morte
mais longe te levaria.

Mauro Mota
(1911-1984)

Mais sobre Mauro Mota em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota

sábado, outubro 24, 2009

Altiva e couraçada de desdém, Florbela Espanca vive sozinha em seu castelo: a Dor. Por lá passa todo o amor, mas nunca entrou alguém.


Castelã da tristeza


Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor...
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês?... A quem?!...
- E o meu olhar é interrogador -
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr...
Chora o silêncio...nada...ninguém vem...

Castelã da Tristeza, por que choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais?...

À noite, debruçada p'las ameias,
Por que rezas baixinho? Por que anseias?...
Que sonho afagam tuas mãos reais?...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Triste, Joaquim Cardozo vê o Recife morto, mutilado, grande, pregado à cruz das novas avenidas. E as mãos longas e verdes da madrugada o acariciam.


Recife morto


Recife. Pontes e canais.
Alvarengas, açúcar, água verde, água negra.
Torres de tradição, desvairadas, aflitas,
apontam para o abismo negro-azul das estrelas.
Pátio do Paraíso. Praça de São Pedro.
Lajes carcomidas, decrépitas calçadas.
Falam, baixo, na pedra, as vozes da alma antiga.

Gotas de som sobre a cidade,
gritos de metal,
que o silêncio da treva condensa em harmonia.
As horas caem do relógio do Diário,
da Faculdade de Direito e do Convento
de São Francisco;
duas, três, quatro... A alvorada se anuncia.

Agora, ao ouvir as horas que as torres apregoam,
vou navegando o mar de sombra das vielas,
e o meu olhar penetra o reflexo, o prodígio,
a humilde proteção dos telhados sombrios,
o equilíbrio burguês dos postes e dos mastros,
a ironia curiosa das sacadas.
As janelas das velhas casas negras,
bocas abertas desdentadas, dizem versos
para a mudez imbecil dos espaços imóveis.

Vagam fantasmas, pelas velhas ruas,
ao passo que, em falsete, a voz fina do vento
faz rir os cartazes.

Asas imponderáveis, úmidos véus enormes.
Figuras amplas, dilatadas pelo tempo,
vultos brancos de aparições estranhas,
vindos do mar, do céu... Sonhos! Evocações!

A invasão! caravelas no horizonte!
Holandeses! Vryburg!
Motins. Procissões. Ruído de soldado em marcha.

.................................................................................

Os andaimes parecem patíbulos erguidos.

................................................................................

Duendes!
Manhã vindoura. No ar, prenúncio de sinos.
Recife
ao clamor desta hora noturna e mágica,
vejo-te morto, mutilado, grande,
pregado à cruz das novas avenidas
e as mãos longas e verdes
da madrugada
te acariciam.

Joaquim Cardozo
(1897-1978)

Mais sobre Joaquim Cardozo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Cardoso

sexta-feira, outubro 23, 2009

Depois de recuperar sua forma usual, Ferreira Gullar aprendeu que todos os movimentos de amor são noturnos. Mesmo quando praticados à luz do dia.


Coito


Todos os movimentos
do amor
são noturnos
mesmo quando praticados
à luz do dia

Vem de ti o sinal
no cheiro ou no tato
que faz acordar o bicho
em seu fosso:
na treva, lento,
se desenrola
e desliza
em direção a teu sorriso

Hipnotiza-te
com seu guizo
envolve-te
em seus anéis
corredios
beija-te
a boca em flor
e por baixo
com seu esporão
te fende te fode

e se fundem
no gozo

depois
desenfia-se de ti

a teu lado
na cama
recupero minha forma usual.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Para Gilberto Amado, as mais lindas pernas do mundo são as de Nova Iorque. Parece até que ele não nasceu nem viveu no Brasil...


Pernas de Nova Iorque


Pernas de Nova Iorque
as mais lindas pernas do mundo
eu as vejo trotar
na 5ª Avenida
na 6ª Avenida
na 7ª Avenida
nas avenidas numeradas e nas sem número

Eu as vejo trotar
pernas de Nova Iorque
as mais lindas pernas do mundo
eu as vejo trotar
em Manhattan
em Queen's
no Bronx
em Brooklyn
no Village

Pernas de Nova Iorque
as mais lindas pernas do mundo

Eu as vejo trotar
na direção dos apartamentos
das lojas
dos hotéis
dos bares
dos cinemas
dos teatros

Eu as vejo trotar
pernas de Nova Iorque
em todas direções
de todos os lados
para todos os pontos

E enquanto as vejo trotar
em Manhattan
em Queen's
no Bronx
em Brooklyn
no Village

Pernas de Nova Iorque
as mais lindas pernas do mundo

Enquanto as vejo trotar
em todas as avenidas
em todos os bairros
em todas as ruas
em todos os sentidos
ouço um rumor universal de máquinas de escrever.

Gilberto Amado
(1887-1969)

Mais sobre Gilberto Amado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gilberto_Amado

quinta-feira, outubro 22, 2009

Deprimido, Murilo Mendes diz que a mulher não é o amor, a poesia é o amor. E a poesia da ausência da mulher é equivalente à poesia da posse da mulher.


A desconsoladora


Mulher, eu te procuro continuamente. É mais fácil achar Deus, do que te
achar.

Tenho por ti uma grande atração e repulsão - ao mesmo tempo.

Eu, adormeço com teu amor e deperto com o ódio a ti. E te destruo e te
construo a todo o instante.

Hás de me perseguir até a imortalidade. A paz da mulher não é a paz de
Deus.

A mulher não é o amor. A poesia é o amor. A poesia da ausência da mulher
é equivalente à poesia da posse da mulher.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Acusado de caluniar aquela senhora, Bastos Tigre apresenta o seu melhor argumento de defesa. Ele sempre achou-a feia demais para não ser honesta.


Argumento de defesa


Disse alguém, por maldade ou por intriga,
que eu de Vossa Excelência mal dissera:
que tinha amantes, que era "fácil", que era
da virtude doméstica, inimiga.

Maldito seja o cérebro que gera
infâmias tais que, em cólera, maldigo!
Se eu disser tal, que tenha por castigo
o beijo de uma sogra ou de outra fera!

Ponho a mão espalmada na consciência
e ela, senhora, impávida, protesta
contra essa intriga da maledicência!

Indague a amigos meus: qualquer atesta
que eu acho e sempre achei Vossa Excelência
feia demais para não ser honesta...

Bastos Tigre
(1882-1957)

Mais sobre Bastos Tigre em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bastos_Tigre

quarta-feira, outubro 21, 2009

Meia-noite amarela de sexta-feira, lua cheia, meia quaresma, no pequeno arraial. O assombramento toma conta da noite no belo poema de Guimarães Rosa.


Assombramento


Meia-noite amarela de sexta-feira,
com lua cheia, na meia quaresma,
no pequeno arraial.

Tinidos secos de matracas,
gente cantando orações tétricas
em frente às cruzes das encruzilhadas,
pedindo ao povo que está dormindo
rezas para as almas do purgatório
que eles estão encomendando.

E logo atrás vêm vultos brancos,
almas penadas sussurrando,
com ossos de defuntos alumiando nas frias mãos brancas.

Mulas-sem-cabeça galopam doidas,
pelas estradas,
queimando o capim com as chispas dos cascos.
Há lobisomens uivando,
na velha igreja tábuas rangendo.
caixões pretos junto das cruzes,
mortalhas largadas diante das portas,
uma mulher longa sentando nos telhados,
e o Pitorro, assentado no morro,
de chapéu na cabeça, cachimbando.
Por entre as sepulturas,
o fogo-fátuo de fósforo escorre:
é um grande raio da lua amarela,
que desceu, por engano, ao cemitério,
e lá vai fugindo,
assombrado, amedrontado,
sem tempo de sumir.
Latiram ao longe:
foi a noite, soltando os seus cachorros
"Corta-Vento", "Rompe-Ferro", "Acode-a-Tempo",
para o socorrer...

Guimarães Rosa
(1908=1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

Eduardo Coimbra conheceu-a feliz. Quando a pecadora ainda tinha em seu rosto um tom aveludado e o perfume sutil da cândida inocência.


Pecadora


Conheci-a feliz. Na fina transparência
do seu rosto gentil dum tom aveludado,
havia a nota ideal dum sonho imaculado,
e o perfume sutil da cândida inocência.

Restava-lhe inda a mãe. Que límpida existência,
no pequeno casebre antigo e sossegado!
Como o tempo corria alegre e perfumado!
Que esplêndido viver de luminosa essência!

Há dias, encontrei-a. Ao vê-la, estremeci;
não era a mesma já, que em tempo conheci
de modesto roupão e olhar que alucinava.

Mas notei que o cetim lustroso do vestido
tinha manchas sutis - vestígio dolorido
das lágrimas sem fim que a triste derramava.

Eduardo Coimbra
(1864-1884)

terça-feira, outubro 20, 2009

Mario Quintana vê uma procissão de espantalhos, pela miséria colorida, vindo pelos atalhos. Eles pediam vida, queriam vida!



Sonho de uma noite de verão


Uma procissão de espantalhos,
pela miséria colorida,
pelos atalhos
vinha:
pediam vida, queriam vida!
E as suas caras eram trágicas
porque tinham todas a mesma expressão
- que era o mesmo de não terem nenhuma expressão.
E tão insuportável era aquela cara única
que a polícia atirou em cima deles bombas de gás hilariante.
Nenhum espantalho riu.
A procissão continuou,
a procissão está agora em plena Estrada Real
enquanto
pelos atalhos
por toda parte
por cima dos gramados
por cima dos corpos atropelados
os automóveis fogem como baratas.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Foi assim que Alphonsus de Guimaraens a viu. Um sonho de rosas num país nevoento, de que afinal ele acorda em sobressalto.


Foi assim que eu a vi...


Foi assim que eu a vi. Desse momento
a lembrança tranquila vem-me do alto
- sonho de rosas num país nevoento,
de que afinal acordo em sobressalto.

Fugiu-me essa visão: de novo tento
firmar os passos para um novo assalto.
Mas que farás, pobre homem sem alento,
tu, cego de alma e de coragem falto!

Que farás, coração que te magoas,
na sua timidez contemplativa,
só, tão longe das almas que são boas!

Que farás, alma, tu que louca e pasma,
seguindo embora o rastro de uma viva,
beija os passos largos de um fantasma!

Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)

Mais sobre Alphonsus Guimaraens em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alphonsus_de_Guimaraens

segunda-feira, outubro 19, 2009

Cecília Meireles andou buscando esse dia pelos humildes caminhos onde se escondem as coisas que trazem felicidade. Mas só achou flor de saudade.


Narrativa


Andei buscando esse dia
pelos humildes caminhos
onde se escondem as coisas
que trazem felicidade:
os amuletos dos grilos
e os trevos de quatro folhas...
Só achei flor de saudade.

O arroio levava o tempo.
Ia meu sonho atrás de água.
No chão dormiam abertas
minhas duas mãos sem nada.
Se me chamavam de longe,
se me chamavam de perto,
era perdida a chamada...

Viajei pelas estrelas,
dentro da rosa-dos-ventos.
Trouxe prata em meus cabelos,
pólen da noite sombria...
Mirei no meu coração,
vi os outros, vi meu sonho,
encontrei o que queria.

Já não mais desejo andanças;
tenho meu campo sereno,
com aquela felicidade
que em toda parte buscava.
O tempo fez-me paciente.
A lua, mais doce.
O mar, profunda, erma e brava.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Para Adélia Prado, no dia da ira as coisas tristes vão desaparecer quando soar a trombeta. E as cidades restarão silenciosas, sem um veículo.


O dia da ira


As coisas tristíssimas,
o rolomag, o teste de Cooper,
a mole carne tremente entre as coxas,
vão desaparecer quando soar a trombeta.
Levantaremos como deuses,
com a beleza das coisas que nunca pecaram,
como árvores, como pedras,
exatos e dignos de amor.
Quando o anjo passar,
o furacão ardente do seu vôo
vai secar as feridas,
as secreções desviadas dos seus vasos
e as lágrimas.
As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
reunidos na praça, à espera de seus nomes.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

domingo, outubro 18, 2009

Na dúvida cruel, Castro Alves quer saber: pelas sombras temerosas, onde vai esta canoa? Vai tripulada ou perdida, vai ao certo ou à toa?


A canoa fantástica


Pelas sombras temerosas
Onde vai esta canoa?
Vai tripulada ou perdida?
Vai ao certo ou vai à toa?
Semelha um tronco gigante
De palmeira, que s'escoa...
No dorso da correnteza,
Como bóia esta canoa!...
Mas não branqueja-lhe a vela!
N'água o remo não ressoa!
Serão fantasmas que descem
Na solitária canoa?
Que vulto é este sombrio
Gelado, imóvel, na proa?
Dir-se-ia o gênio das sombras
Do inferno sobre a canoa!...
Foi visão? Pobre criança!
À luz, que dos astros coa,
É teu, Maria, o cadáver,
Que desce nesta canoa?
Caída, pálida, branca!...
Não há quem dela se doa?!...
Vão-lhe os cabelos a rastos
Pela esteira da canoa!...
E as flores róseas dos golfos,
— Pobres flores da lagoa,
Enrolam-se em seus cabelos
E vão seguindo a canoa!...

Castro Alves
(1847-1871)

Mais sobre Castro Alves em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

sábado, outubro 17, 2009

Há mais de 500 anos, Luiz Vaz de Camões já sabia que novos casos de amor, novos enganos. Promessas falsas e escondidas que cumprem grandes danos.


Novos casos de Amor, novos enganos


Novos casos de Amor, novos enganos,
envoltos em lisonjas conhecidas,
do bem promessas falsas e escondidas,
onde do mal se cumprem grandes danos:

como não tomais já por desenganos
tantos ais, tantas lágrimas perdidas,
pois em a vida não basta nem mil vidas
a tantos dias tristes, tantos anos?

Um novo coração mister havia
com outros olhos menos agravados
para tornar a crer o que eu não cria.

Andais comigo, enganos, enganados;
e se o quizerdes ver, cuidai um dia
o que se diz dos bem acutilados.

Luiz Vaz de Camões
(1524-1580)

>Mais sobre Luiz Vaz de Camões em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

Augusto Frederico Schmidt ouve uma fonte, uma fonte invisível, uma voz lívida, uma voz que não chama. É a mesma voz, é a vida caindo no tempo.


Ouço uma fonte


Ouço uma fonte
É uma fonte noturna
Jorrando.
É uma fonte perdida
No frio.

É uma fonte invisível.
É um soluço incessante,
Molhado, cantando.

É uma voz lívida.
É uma voz caindo
Na noite densa
E áspera.

É uma voz que não chama.
É uma voz nua.
É uma voz fria.
É uma voz sozinha.

É a mesma voz.
É a mesma queixa.
É a mesma angústia,
Sempre inconsolável.

É uma fonte invisível,
Ferindo o silêncio.
Gelada jorrando,
Perdida na noite.
É a vida caindo
No Tempo!

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

sexta-feira, outubro 16, 2009

Thiago de Mello sabe que é preciso mudar em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda. Como um rio.


Como um rio


Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.
E de lavar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva,
e lava.

Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.

Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir,
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.

Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
de águas impuras
que afloram a escondida
verdade nas funduras.

Como um rio, que nasce
de outros, saber seguir,
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.

Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

No poema de Olavo Bilac, o padre pergunta quem é o pai da menina. Mas Jacinta, a mãe, pede para pensar, que ela não sabe catar agulha em palheiro.


Agulha em palheiro


Numa bela terça-feira
- taful, com ar de rainha,
Jacinta, mulher matreira,
vai batizar a filhinha.

Na torre o sino repica.
Que pompa! A gente da aldeia
corre toda! E a igreja fica
cheia, cheia, cheia, cheia.

No seu casulo dourado
o padre, sereno e grave,
aproxima-se. Ajoelhado
o povo murmura um'Ave.

Pega o padrinho uma vela,
pega a madrinha a criança
- menina gorducha e bela,
menina corada e mansa.

Contente o padre examina
o povo. E perto da pia:
"Quem é o pai da menina?"
pergunta com bonomia.

"Senhor padre, que pergunta!"
diz Jacinta corando...
E olha em roda a gente junta
e diz, o povo apontando:

"Oh! Trabalho extraordinário,
deixe-me pensar primeiro,
que eu não sei, senhor vigário,
catar agulha em palheiro".

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

quinta-feira, outubro 15, 2009

No corpo feminino, Carlos Drummond de Andrade confessa ter uma preferência. Uma doce preferência, a quem dedica seu mais íntimo suspiro.


No corpo feminino, esse retiro


No corpo feminino, esse retiro
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro

a mão em concha - a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro.

me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drumond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Para Artur de Azevedo, o noivo como noivo é repugnante. O miserável dorme a sono solto enquanto a noivinha suspira a seu lado no leito.


Miserável


O noivo, como noivo, é repugnante:
materialão, estúpido, chorudo,
arrotando, a propósito de tudo,
o ser comendador e negociante.

Tem a viuvinha, a noiva interessante,
todo o arsenal de um poeta guedelhudo:
alabastro, marfim, coral, veludo,
azeviche, safira e tutti quanti.

Da misteriosa alcova a porta geme,
o noivo dorme num lençol envolto...
Entre a viuvinha, a noiva...Ó céu, contém-me!

Ela deita-se...espera...Qual! Revolto,
o leito estala...Ela suspira...freme...
e o miserável dorme a sono solto!...

Artur Azevedo
(1855-1908)

Mais sobre Artur Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_de_Azevedo

quarta-feira, outubro 14, 2009

O olhar para trás de Vinicius de Moraes tem um quê de piedade ou de amor. Em seu poema, o infinito nada poderá contra ele porque dele quer tudo.


O olhar para trás

Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.

Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.

Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez… mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.

Alguém gritaria longe: – "Quantas rosas nos deu a primavera!..."
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o vôo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.

Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! – a sua voz é fresca como o orvalho...
Beijam-me a face – irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?

Voltaria o silêncio – seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa – Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?

E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...

No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.

E que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.

Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
Eu diria – Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que chegaste a mim cheio de chagas?

Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
Eu te diria – Por que vieste te dar ao já vendido?

Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!

Fora, um riso de criança – longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.

Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.

Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...

E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Abgar Renault precisa de uma palavra, a palavra que não tem. Uma só palavra ele roga, como quem pede uma esmola.


Como quem pede uma esmola



Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

terça-feira, outubro 13, 2009

Num meio-dia de fim de primavera, Alberto Caeiro teve um sonho como uma fotografia. Era a história do seu Menino Jesus.


Num meio-dia de fim de primavera


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.

...........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

.........................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

..........................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Sylvia Plath diz que é pura demais, para seu amor ou para qualquer um. Pura? Como assim?


Febre 40º


Pura? Como assim?
As línguas do inferno
São sujas, sujas como as três

Línguas do sujo e gordo Cérbero
Que arfa ao portão. Incapaz
de lamber e limpar

O membro em febre, o pecado, o pecado
A chama chora.
O cheiro inconfundível

De um toco de vela!
Amos, amor, a fumaça escapa de mim
Como a écharpe de Isadora, e temo

Que uma das pontas ancore-se na roda.
Uma fumaça amarela e lenta assim
Faz de si seu elemento. Não vai subir,

Mas envolver o globo
Sufocando o velho e o oprimido,
O frágil

Bebê em seu berço,
Orquídea pálida
Suspensa em seu jardim suspenso no ar,

Leopardo diabólico!
A radiação o embarque
E o mate em uma hora.

Engordurando os corpos dos adúlteros
Como as cinzas de Hiroshima que os devora.
O pecado. O pecado.

Meu bem, passei a noite
Me virando, indo e vindo, indo e vindo,
Os lençóis me oprimindo como o beijo de um devasso.

Três dias. Três noites.
Limonada, canja
Aguarda, água me deixa enjoada.

Sou pura demais pra você ou pra qualquer um.
Seu corpo
Me ofende como o mundo ofende Deus. Sou uma lanterna

Minha cabeça uma lua
De papel japonês, minha pele folheada a ouro
Infinitamente delicada e infinitamente cara.

Meu calor não te assusta. Nem minha luz.
Sou uma camélia imensa
Que oscila e jorra e brilha, gozo a gozo.

Acho que estou chegando
Acho que posso levantar
Contas de metal ardente voam, e eu, amor, eu

Sou uma virgem pura
De acetileno
Cercada de rosas,

De beijos, de querubins,
Ou do que sejam essas coisas róseas.
Não você, nem ele,

Não ele, nem ele
(Eu me dissolvo toda, anágua de puta velha)
Ao Paraíso.

Sylvia Plath
(1932-1963)

Mais sobre Sylvia Plath em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sylvia_Plath








segunda-feira, outubro 12, 2009

Mayakovsky diz que foi agraciado com o amor sem limites. E que até o sol se assombrava com ele.


Garotos

Fui agraciado com o amor sem limites.
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
"Garoto danado!"
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu, com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol assombrava:
"Daquele tamanhinho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
nesse tico de gente
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas?"

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Maiakovski

A primeira vez que Affonso Romano entendeu do mundo alguma coisa foi quando na infância cortou o rabo de uma lagartixa. E ela continuou se mexendo.


A primeira vez

A primeira vez que entendi do mundo alguma coisa,
foi quando na infância cortei o rabo de uma lagartixa
e ela continuou se mexendo.
De lá pra cá fui percebendo
que as coisas permanecem vivas e tortas,
que o amor não acaba assim,
que é difícil extirpar o mal pela raiz.
.
A segunda vez que entendi do mundo alguma coisa,
foi quando na adolescência me arrancaram do lado esquerdo
três certezas e eu tive que seguir em frente.
.
De lá pra cá aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens,
seja nas nuvens ou no grafite de qualquer muro.

Affonso Romano de Sant'Anna

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

domingo, outubro 11, 2009

Para Oswald de Andrade, a poesia também existe para denunciar as injustiças sociais. E em sua rebeldia chega até a inventar um verbo irregular.



Verbo crackar


Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha causa
Ele azula para o sertão
Nós entramos em concordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa.

Sê pirata
Sede trouxas

Abrindo o pala
Pessoal sarado

Oxalá eu tivesse sabido que esse verbo era irregular.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

(* verbo inventado, baseado no crack da Bolsa de Nova York em 1929)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

sábado, outubro 10, 2009

Versos! Versos! Sei lá o que são versos, sei lá! Meu pobre coração partido em mil pedaços são talvez versos, no pranto de Florbela Espanca.



Versos


Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma...

Versos...Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!... Sei eu lá também que são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

sexta-feira, outubro 09, 2009

Do mote popular à glosa, Mário Sá-Carneiro brinca com as palavras mas não com o sentimento. Para o poeta, o amor não é um bem, quem ama sempre padece


O amor

Mote

Amor é chama que mata
Sorriso que desfalece,
Madeixa que se desata,
Perfume que se esvaece.

(Popular)

Glosas

Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão,
É mal do coração
E com ele se endoudece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.

Madeixa que se desata
Denominam-no também.
O amor não é um bem:
Quem ama sempre padece.
O amor é um perfume
Perfume que esvaece.


Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Para Ana Cristina Cesar, nada disfarça o apuro do amor. E ao fundo do horto florestal ela ouve coisas que nunca ouviu, pássaros que gemem.



Nada disfarça o apuro do amor


Um carro em ré. Memória de água em movimento. Beijo.
Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao
céu.
Aguço o ouvido.
Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar
clandestino da felicidade.
Preciso me atar ao velame com as próprias mãos.
Sirgar.
Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que
nunca ouvi, pássaros que gemem.


Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

quinta-feira, outubro 08, 2009

Vai-se a vida, resta a canção. Não foi uma canção perdida, ficaste no meu coração, diz Cecília Meireles em sua dedicatória.


Dedicatória


Vai-se a vida,
resta a canção.
Não foi uma canção perdida.
Ficaste no meu coração.

...................................................

Queria só um sorriso.
Mas deram-me um beijo.
Perdi metade do juízo
e fui dar ao Paraíso.
São Pedro, vendo-me a cara,
dizia: "Mas que pequena!
Com uma estrela tão clara
numa boca tão morena!"

(Qual seria esse tesouro?
Seria o teu beijo?
Seria o sorriso?
Ou apenas o ouro
do meu dente siso?)


Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Passageiro, Cassiano Ricardo diz que o trem de ferro desloca o sentido das coisas. E com ele, viajam as palavras.


Viajam as palavras


Passageiros, formo como que um diagrama
entre o céu tremido e o jornal que a trepidação
do trem sacode
em minhas mãos.

A paisagem me vem oferecer seus buquês
roxos e cor de ouro
mas foge, arrependida.

Vistos, de longe, de passagem,
todos os rostos são amigos, são iguais.

Só que depois, em minha memória,
que estará rolando ainda esta paisagem
impressa em mim, à minha saudade
como um quadro à parede.

O possível desastre
faz cantar, como uma carretilha ao meu ouvido,
o pássaro do adeus.

O trem de ferro desloca o sentido das coisas.

Viajam as palavras.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

quarta-feira, outubro 07, 2009

Para Paulo Leminski, num tempo de desencontrários só as dúvidas ficam de pé. Mais-que-perfeito.


Desencontrários


Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.

Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.

Nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé
certezas o vento leva
só dúvidas ficam de pé.

Paulo Leminsky
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Em sua balada, Abgar Renault diz que hoje está inabitável. Não sabe o por quê, mas a vida está doendo, doendo.


Balada da irremediável tristeza


Eu hoje estou inabitável...
Não sei por quê,
levantei com o pé esquerdo:
o meu primeiro cigarro amargou
como uma colherada de fel;
a tristeza de vários corações bem tristes
veio, sem quê, nem por quê,
encher meu coração vazio...vazio...
Eu hoje estou inabitável...

A vida está doendo...doendo...
A vida está toda atrapalhada...
Estou sozinho numa estrada
fazendo a pé um raid impossível.

Ah! se eu pudesse me embebedar
e cambalear...cambalear...
cair, e acordar desta tristeza
que ninguém, ninguém sabe...
Todo mundo vai rir destes meus versos,
mas jurarei por Deus, se for preciso:
eu hoje estou inabitável...

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

terça-feira, outubro 06, 2009

Mario Quintana escreveu um poema triste. Belo, apenas da sua tristeza.



Eu escrevi um poema triste


Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mario Quintana
(1904-1996)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Em sua canção do recomeço, Lya Luft volta à casa onde viveu. Este é o seu lugar, aonde voltou depois de tanto tempo.


Canção do recomeço


A casa aonde voltei
depois de muitos anos,
bóia como uma ilha de aguapés na noite,
presa por uma raiz doce e dolorosa
que me define.

Na madrugada caminho pelos quartos
como no fundo do mar
onde essa raiz se finca.
Pelas vidraças, o jardim são algas;
meus filhos dormem como quando
eram meninos,
e suas respirações, como sentimentos,
fundem-se neste bojo.

Este é o meu lugar
aonde voltei depois de tanto tempo,
como quem, misturando peças
dos enigmas mais arcaicos,
montasse laboriosamente o seu quebra-cabeça.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

segunda-feira, outubro 05, 2009

Cora Coralina quis ser um dia jardineira de um coração. Mas como coração é terra que ninguém vê, porta fechada foi o que ela encontrou.


Coração é terra que ninguém vê

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...

Cora Coralina

(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Nada tenho de meu, nem os sapatos que vão acompanhar este defunto. Não foram nunca meus, sonhos e fatos, reconhece com tristeza Carlos Nejar.


Poemas e sapatos


Nada tenho de meu, nem os sapatos
que vão acompanhar este defunto.
Nem tampouco montanhas e regatos
que habitavam o verso, nem o indulto

pode valer-me, o soldo, mero extrato
de contas. Nada tenho, nem o intuito
consome esta vontade ou desacato.
Desapareça o nome, seu reduto

de carne e bronze, a fome incorporada
e mais desapareça onde fecundos
são dias e são deuses nesta amada.

Não foram nunca meus - sonhos e fatos.
Nada tenho. Poemas e sapatos
irão reconhecer-me noutro mundo.

Carlos Nejar

Mais sobre Carlos Nejar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

domingo, outubro 04, 2009

Nada fica de nada, nada somos. Para Ricardo Reis, somos contos contando contos, nada.


Nada fica


Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Lembrança, quanta lembrança dos tempos que já lá vão. Minha vida de criança, minha bolha de sabão, nos versos de Guilherme de Almeida.


Coração


Lembrança, quanta lembrança
Dos tempos que já lá vão!
Minha vida de criança,
Minha bolha de sabão!

Infância, que sorte cega,
Que ventania cruel,
Que enxurrada te carrega,
Meu barquinho de papel?

Como vais, como te apartas,
E que sozinho que estou!
Ó meu castelo de cartas,
Quem foi que te derrubou?

Tudo muda, tudo passa
Neste mundo de ilusão;
Vai para o céu a fumaça,
Fica na terra o carvão.

Mas sempre, sem que te iludas,
Cantando num mesmo tom,
Só tu, coração, não mudas,
Porque és puro e porque és bom!


Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

sábado, outubro 03, 2009

Triste a escutar a sucessividade dos segundos, Augusto dos Anjos ouve o choro da Energia abandonada.É a Natureza chorando no rudimentarismo do Desejo.


O lamento das coisas


Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada.

É a dor da Força desaproveitada,
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é, em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

sexta-feira, outubro 02, 2009

Murilo Mendes diz que todos lhe indicam o caminho contrário. Mas ele sente que a poesia em pára-quedas tanto desce como sobe.


Abismo


Todos me indicam o caminho contrário.

Bebi na música
E fechei-me a sós com o sonho.

Quando acordei
Haviam destruído os gramofones
E a treva anterior envolvia a cidade.

O mar passava nos braços
Uma pulseira de mortos.

Abri um pé de magnólia
Dando sombra ao Minotauro.
Desde então
Meu peito é zona de guerra,
Fiz um eixo com as estrelas.

A poesia em pára-quedas
Tanto desce como sobe.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, outubro 01, 2009

Miguel Torga admite que livre não é, mas quer a liberdade. E a traz dentro de si como um destino.


Conquista


Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

João Cabral de Melo diz que a tinta e a lápis escrevem-se todos os versos do mundo. Mas é no papel, no branco asséptico, que o verso rebenta.


O poema


A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem
nadando no poço
negro e fecundo?

Que outros deslizam
largando o carvão
de seus ossos?

Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?

O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.

É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho,

é de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Eu fico todo bestificado olhando a lua enquanto as mãos brasileiras de você fazem fandango no Chopin. Mas tem uma voz gritando na rua, diz Pedro Nava.


Noturno de Chopin


Eu fico todo bestificado olhando a lua
enquanto as mãos brasileiras de você
fazem fandango no Chopin

Tem uma voz gritando lá na rua:
Amendoim torrado
tá cabano tá no fim...
Coitado do Chopin! Tá acabando tá no fim...

Amor: a lua tá doce lá fora
o vento tá doce bulindo nas bananeiras
tá doce esse aroma das noites mineiras:
cheiro de gigilim manga-rosa jasmim.

Os olhos de você, amor...

O Chopin derretido tá maxixe
meloso
gostoso
(os olhos de você, amor...)
correndo que nem caldo
na calma da noite belo horizonte.

Pedro Nava
(1903-1984)

Mais sobre Pedro Nava em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Nava