quinta-feira, julho 30, 2009

No belo soneto de Vinicius de Moraes, todo o seu conhecimento sobre as mulheres. Principalmente sobre a que lhe serviu de inspiração para este poema.


Soneto da mulher inútil


De tanta graça e de leveza tanta
Que quando sobre mim, como a teu jeito
Eu tão de leve sinto-te no peito
Que o meu próprio suspiro te levanta.

Tu, contra quem me esbato liquefeito
Rocha branca! brancura que me espanta
Brancos seios azuis, nívea garganta
Branco pássaro fiel com que me deito.

Mulher inútil, quando nas noturnas
Celebrações, náufrago em teus delírios
Tenho-te toda, branca, envolta em brumas.

São teus seios tão tristes como urnas
São teus braços tão finos como delírios
É teu corpo tão leve como plumas.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Resumindo, Mario Benevides se sente em situações completamente opostas. Ou vice e versa.


Viceversa


Tengo medo de verte
necesidad de verte
esperanza de verte
desazones de verte
tengo ganas de hallarte
preocupación de hallarte
certidumbre de hallarte
pobres dudas de hallarte
tengo urgencia de oírte
alegría de oírte
buena suerte de oírte
y temores de oírte
o sea
resumiendo
estoy jodido
y radiante
quizá más lo primero
que lo segundo
y tambiém
viceversa

Mario Benedetti
(1920-2009)

Mais sobre Mario Benedetti em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mario_Benedetti

quarta-feira, julho 29, 2009

A Eternidade está longe, um dia serei feliz? Manuel Bandeira acredita que sim, mas não há de ser já, está longe, brinca de tempo-será.


Tempo-será


A Eternidade está longe
(Menos longe que o estirão
Que existe entre o meu desejo
E a palma de minha mão).

Um dia serei feliz?
Sim, mas não há de ser já:
A Eternidade está longe,
Brinca de tempo-será.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Adeus. Um dos mais belos poemas de amor e desamor da língua portuguesa.

Adeus

Já gastamos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

terça-feira, julho 28, 2009

Meu coração o que é que esquece? Se é o que eu sinto que foi vão, por que me dói o coração? Muitas são as respostas para as dores de Fernando Pessoa.


Lenta e quieta


Lenta e quieta a sombra vasta
Cobre o que vejo menos já.
Pouco somos, pouco nos basta.
O mundo tira o que nos dá.
Que nos contente o pouco que há.

A noite, vindo como nada,
Lembra-me quem deixei de ser,
A curva anônima da estrada
Faz-me lembrar, faz-me esquecer,
Faz-me ter pena e ter de a ter.

Ó largos campos já cinzentos
Na noite, para além de mim,
Vou amanhã meus pensamentos
Enterrar onde estais assim.
Vou ter aí sossego e fim.

Poesia! Nada! A hora desce
Sem qualidade ou emoção.
Meu coração o que é que esquece?
Se é o que eu sinto que foi vão,
Por que me dói o coração?

Fernando Pessoa
(1889-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Quantos sonhos de amor jazem imersos em ti que és dor, temor, glória e desgraça? Na questão de Menotti del Picchia, toda a sua paixão pelos sonetos.


Soneto


Soneto! Mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quanto sonhos de amor jazem imersos
em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia barsileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...

Menotti del Picchia
(1892-1988)

Mais sobre Menotti del Picchia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

segunda-feira, julho 27, 2009

Assim te quero, amor, assim te amo, diz Pablo Neruda à mulher amada. Com o fogo e a ternura de um amor verdadeiro.


Es así que te quiero, amor


Así te quiero, amor,
amor, así te amo,
así como te vistes
y como se levanta
tu cabellera y como
tu boca se sonríe,
ligera como el agua
del manantial sobre las piedras puras,
así te quiero, amada.

Al pan yo no le pido que me enseñe
sino que no me falte
durante cada día de la vida.

Yo no sé nada de la luz, de dónde
viene ni dónde va,
yo sólo quiero que la luz alumbre,
yo no pido a la noche
explicaciones,
yo la espero y me envuelve,
y así tú, pan y luz
y sombra eres.

Has venido a mi vida
con lo que tú traías,
hecha
de luz y pan y sombra te esperaba,
y así te necesito,
así te amo,
y a cuantos quieran escuchar mañana
lo que no les diré, que aquí lo lean,
y retrocedan hoy porque es temprano
para estos argumentos.

Mañana sólo les daremos
una hoja del árbol de nuestro amor, una hoja
que caerá sobre la tierra
como si la hubieran hecho nuestros labios,
como un beso que cae
desde nuestras alturas invencibles
para mostrar el fuego y la ternura
de un amor verdadero.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

António Gedeão não encontrou sinais de negro, nem vestígios de ódio nas lágrimas daquela mulher. Apenas água e cloreto de sódio.


Lágrima de preta


Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima para analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterelizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é de costume:

nem sinais de negro
nem vestígios de ódio,
água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão
(1906-1997)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho

sexta-feira, julho 24, 2009

Já não tenho lágrimas, estão caídas longe. Longe estão caídas, entre esses montes de saudades vivas, o pranto de Cecília Meireles.


Já não tenho lágrimas


Já não tenho lágrimas:
estão caídas
longe, em vagas margens,
qual mornas ovelhas
recém-nascidas.

Longe estão caídas,
entre esses montes
de saudades vivas,
de figuras frias,
ai, de que horizontes!

Suspiros montes!
Porém, agora,
talvez não me encontrem.
Pois a alma se esconde,
porque já nem chora.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Em um de seus mais famosos poemas, pergunta Cassiano Ricardo: Papagaio insensato, que te fez assim? Quem te ensinou , por maldade, a palavra saudade?


Papagaio gaio


Papagaio insensato,
que te fêz assim?
Que não sabes falar
brasileiro
e já sabes latim?

Papagaio insensato,
ave agreste, do mato,
que diabo em ti existe,
verde-gaio,
que nunca estás triste?

Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?

Papagaio triste,
papagaio gaio,
quem te fez tão triste
e tão gaio,
triste mas verde-gaio?

Papagaio gaio,
quem te ensinou,
em mais
do mato, a repetir,
papagaio,
tanto nome feio?

Gaio, papagaio,
gaio, gaio, gaio,
que repetes tudo...
Antes fosses
um pássaro mundo.

Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?

Papagaio, gaio.
Gaio, gaio, gaio.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

quinta-feira, julho 23, 2009

Indaga-se por toda parte, onde está a poesia? Vai à esquina comprar jornal, diz Ferreira Gullar.


A poesia


Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
meu poema é puro, flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
é de papel.
Não é como a açucena
que efêmera
passa.
E não está sujeito a traça
pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
o meu poema está infenso à vida.

Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:
"Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de Abreu".
'A Fábrica de Fiação Gamboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários".
"A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
afirmou descaradamente: "Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz".

O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou

Era pouco? era muito?
Era uma fome azul e navalha
uma vertigem de cabelos dentes
cheiros que traspassam o metal
e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco,
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo
onde eu morria

Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca
E agora
recostada no divã da sala
depois de tudo
a poesia ri de mim
Ih, é preciso arrumar a casa
que Audrey vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça
O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?
passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa, Ingrácia,
a tua grácia!

E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera.

E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E só).

Poesia - deter a vida com palavras?
Não - libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
esia - falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão

E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-
saro? o pás-
?
Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Cesário Verde admite ser feio, sólido, leal, homem varonil. E à mulher amada, bela, frágil, assustada, ele quer dedicar a sua pobre vida.


Eu que sou feio, sólido, leal


Eu que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa de um café devasso,
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,
Nesta babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorrestes um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, sudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
...
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

«Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!»
De repente, parastes embaraçada
Ao pé de um numeroso ajuntamento,

E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Um pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

Cesário Verde
(1855-1886)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

quarta-feira, julho 22, 2009

Na idealização da humanidade futura, Augusto dos Anjos não achou a luz que os Céus inflama. Somente moléculas de lama e a mosca alegre da putrefação.


Idealização da humanidade futura


Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
- Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara etnicamente irracionais! -

Não sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

O olhar dela ferirá Abgar Renaut infalível. E ele não tem forças para esperá-la naquela cama, fazendo a barba ou bêbado e escondido como um rato.


A ela outra vez


Como é duro esperar-te, sem querer-te,
na solidão de seitas e esperanças!
Pensar em ti assola a minha vida,
destrói raízes, folhas, flores, frutos
e fecha os mais próximos horizontes,
lembrando a cada passo e a cada gesto
a gruta de ursos e de surdos-mudos.
Eu temo os teus anúncios sem palavras,
teus passos de silêncio, sombra ou treva,
teu relógio tranquilo e a foice mágica
por ele comandada noite e dia;
temo, nulo, o desfecho do teu golpe
que dilacerará meu mapa triste,
no qual não vejo como caminhar,
mas procuro, com os olhos e com as unhas,
um buraco de nada que me oculte
do poderio do teu faro e mão.
Como, quando e em que rápido motor
viajará e certeira me acharás
não sei: somente sei que o teu olhar
me ferirá de súbito e infalível
e não tenho nem forças, nem enganos
para esperar-te aqui, aquém, além,
entre estes livros ou naquela cama,
assentado ou de pé, fazendo a barba
ou bêbado e escondido como um rato.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

terça-feira, julho 21, 2009

Em um de seus mais belos poemas, Drummond já não quer palavras, nem delas carece. São as lições da infância desaprendidas na idade madura.


Idade madura


As lições da infância
desaprendidas na idade madura.
Já não quero palavras
nem delas careço.
Tenho todos os elementos
ao alcance do braço.
Todas as frutas
e consentimentos.
Nenhum desejo débil.
Nem mesmo sinto falta
do que me completa e é quase sempre melancólico.

Estou solto no mundo largo.
Lúcido cavalo
com substância de anjo
circula através de mim.
Sou varado pela noite, atravesso os lagos frios,
absorvo epopéia e carne,
bebo tudo,
desfaço tudo,
torno a criar, a esquecer-me:
durmo agora, recomeço ontem.

De longe vieram chamar-me.
Havia fogo na mata.
Nada pude fazer,
nem tinha vontade.
Toda a água que possuía
irrigava jardins particulares
de atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.
Nisso vieram os pássaros,
rubros, sufocados, sem canto,
e pousaram a esmo.
Todos se transformaram em pedra.
Já não sinto piedade.

Antes de mim outros poetas,
depois de mim outros e outros
estão cantando a morte e a prisão.
Moças fatigadas se entregam, soldados se matam
no centro da cidade vencida.
Resisto e penso
numa terra enfim despojada de plantas inúteis,
num país extraordinário, nu e terno,
qualquer coisa de melodioso,
não obstante mudo,
além dos desertos onde passam tropas, dos morros
onde alguém colocou bandeiras com enigmas,
e resolvo embriagar-me.

Já não direi que estou resignado
e perdi os melhores dias.
Dentro de mim, bem no fundo,
há reservas colossais de tempo,
futo, pós-futuro, pretérito,
há domingos, regatas, procissões,
há mitos proletários, condutos subterrâneos,
janelas em febre, massas de água salgada, meditação e sarcasmo.

Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,
negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei médico, faca de pão, remédio, toalha.
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação feérica,
viva em mim qual um inseto.

Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade
com sua mará de ciências afinal superadas.
Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,
descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.
Eles dizem o caminho,
embora também se acovardem
em face a tanta claridade roubada ao tempo.
Mas eu sigo, cada vez menos solitário,
em ruas extremamente dispersas,
transito no canto do homem ou da máquina que roda,
aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de casa,
e ganho.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Como nos versos de Mauro Mota, quem já não deu adeus a si mesmo e não sentiu vontade de partir para não voltar mais?


Passaporte

Dava adeus a si mesmo
na ponte sobre o cais.
A cada hora, partia-se
para não voltar mais.

Mauro Mota
(1911-1984)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota

domingo, julho 19, 2009

Aquela senhora tem um piano, mas para que é preciso ter um piano? Para Alberto Caeiro, o melhor é ter ouvidos e amar a Natureza.


Aquela senhora


Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.

Alberto Caeiro
(1888-1935)

Mais sobre Alberto Caeiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Caeiro

Carlos Pena vê o Nordeste dos homens que trabalham. No mar e nos rios, na bagaceira dos engenhos, no cais do Apolo, nos trapiches de Maceió.


No Nordeste


Um Nordeste
onde nunca deixa de haver
uma mancha dágua:
um avanço de mar, um rio, um riacho,
o esverdeado de uma lagoa.
Onde a água faz da terra mole o que quer:
inventa ilhas, desmancha istmos e cabos.
altera a seu gosto a geografia convencional
dos compêndios.
Um Nordeste da terra.
Das árvores lambuzadas de resinas.
Das águas.
Do corpo molhado dos homens que trabalham
dentro do mar e dos rios,
na bagaceira dos engenhos,
no cais do Apolo,
nos trapiches de Maceió.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

sábado, julho 18, 2009

Na hora única de João Cabral de Melo, aconteceu de tudo. E os homens perderam-se depois da madrugada.


A hora única


Os homens perderam-se
depois da madrugada.
Soprou do mar, das montanhas
do amigo morto
e dos amantes jamais suspeitados
uma viração imprevista
e a escuridão
que retardou para sempre
o aparecimento do sol
fez secar as flores colhidas
que aviões misteriosos deixaram cair
para serem distribuídas em profusão
entre as noivas de branco
nas salas de visita.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Adeus, meu canto, é hora da partida. Assim, Castro Alves dá início a um dos seus mais importantes e menos conhecidos poemas.


Adeus, meu canto


Adeus, meu canto! É a hora da partida...
O oceano do povo s'encapela.
Filho da tempestade, irmão do raio,
Lança teu grito ao vento da procela.

O inverno envolto em mantos de geada
Cresta a rosa de amor que além se erguera...
Ave de arribação, voa, anuncia
Da liberdade a santa primavera.

É preciso partir, aos horizontes
Mandar o grito errante da vedeta.
Ergue-te, ó luz! - estrela para o povo,
- Para os tiranos - lúgubre cometa.

Adeus, meu canto! Na revolta praça
Ruge o clarim tremendo da batalha.
Águia - talvez as asas te espedacem,
Bandeira - talvez rasgue-te a metralha.

Mas não importa a ti, que no banquete
O manto sibarita não trajaste -,
Que se louros não tens na altiva fronte
Também da orgia a coroa renegaste.

A ti que herdeiro duma raça livre
Tomaste o velho arnês e a cota d'armas;
E no ginete que escavarva os vales
A corneta esperaste dos alarmas.

É tempo agora pr'a quem sonha a glória
E a luta... e a lua, essa fatal fornalha,
Onde referve o bronze das estátuas,
Que a mão dos séc'los no futuro talha...

Parte, pois, solta livre aos quatro ventos
A alma cheia das crenças do poeta!...
Ergue-te ó luz! - estrela para o povo,
Para os tiranos - lúgubre cometa.

Há muita virgem que ao prostíbulo impuro
A mão do algoz arrasta pela trança;
Muita cabeça d'ancião curvada,
Muito riso afogado de criança.

Dirás à virgem: - Minha irmã, espera:
Eu vejo ao longe a pomba do futuro.
- Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo
Que atropela-te o passo mal seguro...

A cada berço levarás a crença.
A cada campa levarás o pranto.
Nos berços nus, nas sepulturas rasas,
- Irmão do pobre - viverás, meu canto.

E pendido através de dois abismos,
Com os pés na terra e a fronte no infinito,
Traze a benção de Deus ao cativeiro,
Levanta a Deus do cativeiro o grito!

II

Eu sei que ao longe na praça.
Ferve a onda popular,
Que às vezes é pelourinho,
Mas poucas vezes - altar.
Que zombam do bardo atento,
Curvo aos murmúrios do vento
Nas florestas do existir,
Que babam fel e ironia.
Sobre o ovo da utopia
Que guarda a ave do porvir.

Eu sei que o ódio, o egoísmo,
A hipocrisia, a ambição,
Almas escuras de grutas,
Onde não desce um clarão,
Peitos surdos às conquistas,
Olhos fechados às vistas,
Vistas fechadas à luz,
Do poeta solitário
Lançam pedra ao calvário,
Lançam blasfêmias à cruz.

Eu sei que a raça impudente
Do escriba, do fariseu,
Que ao Cristo eleva o patíbulo,
A fogueira a Galileu
É o fumo da chama vasta,
Sombra - que os séculos arrasta,
Negra, torcida, a seus pés;
Tronco enraizado no inferno,
Que se arqueia escuro, eterno,
Das idades através.

E eles dizem, reclinados
Nos festins de Baltasar:
"Que importuno é esse que canta
Lá no Eufrate a soluçar?
Prende aos ramos do salgueiro
A lira do cativeiro,
Profeta da maldição,
Ou cingindo a augusta fronte
Com as rosas d'Anacreonte
Canta o amor e a criação..."

Sim! cantar o campo, as selvas,
As tardes, a sombra, a luz;
Soltar su'alma com o bando
Das borboletas azuis;
Ouvir o Vento que geme,
Sentir a folha que treme,
Como um seio que pulou,
Das matas entre os desvios,
Passar nos antros bravios
Por onde o jaguar passou;

É belo...E já quantas vezes
Não saudei a terra - o céu,
E o Universo - Bíblia imensa
Que Deus no espaço escreveu?!
Que vezes nas cordilheiras,
Ao canto das cachoeiras,
Eu lancei minha Canção,
Escutando as ventanias
Vagas, tristes profecias
Gemerem na escuridão?!

Já também amei as flores
As mulheres, o arrebol,
E o sino que chora triste,
Ao morno calor do sol.
Ouvi saudoso a viola,
Que ao sertanejo consola,
Junto à fogueira do lar,
Amei a linda serrana,
Cantando a mole tirana
Pelas noites de luar!

Da infância o tempo fugindo
Tudo mudou-se em redor.
Um dia passa em minh'alma
Das cidades o rumor.
Soa a idéia, soa o malho,
O ciclope do trabalho
Prepara o raio do sol.
Tem o povo - mar violento -
Por armas pensamento,
A verdade por farol.

E o homem, vaga que nasce
No oceano popular,
Tem que impedir os espíritos,
Tem uma plaga a buscar
Oh! maldição ao poeta
Que foge - falso profeta -
Nos dias de provação!
Que mistura o tosco iambo
Com o tírio ditirambo
Nos poemas d'aflição!...

"Trabalhar!" brada na sombra
A voz imensa, de Deus -
"Braços! voltai-vos p'ra terra,
Frontes voltai-vos pr'os céus!"
Poeta, sábio, selvagem,
Vós sois a santa equipagem
Da nau da civilização!
Marinheiro, - sobe aos mastros,
Piloto, - estuda nos astros,
Gajeiro, - olha a cerração!"

Uivava a negra tormenta
Na enxárcia, nos mastaréus.
Uivavam nos tombadilhos,
Gritos insontes de réus.
Vi a equipagem medrosa
Da morte à vaga horrorosa
Seu próprio irmão sacudir.
E bradei: - "Meu canto, voa,
Terra ao longe! terra à proa!...
Vejo a terra do porvir!..."

III

Companheiro da noite mal dormida,
Que a mocidade vela sonhadora,
Primeira folha d'árvore da vida,
Estrela que anuncia a luz da aurora,
Da harpa do meu amor nota perdida,
Orvalho que do seio se evapora,
É tempo de partir...Voa, meu canto, -
Que tantas vezes orvalhei de pranto.

Tu foste a estrela vésper que alumia
Aos pastores d'Arcádia nos fraguedos!
Ave que no meu peito se aquecia
Ao murmúrio talvez dos meus segredos.
Mas hoje que sinistra ventania
Muge nas selvas, ruge nos rochedos,
Condor sem rumo, errante, que esvoaça,
Deixo-te entregue ao vento da desgraça.

Quero-te assim; na terra o teu fadário
É ser o irmão do escravo que trabalha,
É chorar junto à cruz do seu calvário,
É bramir do senhor na bacanália...
Se - vivo - seguirás o itinerário,
Mas, se - morto - rolares na mortalha,
Terás, selvagem filho da floresta,
Nos raios e trovões hinos de festas.

Quando a piedosa, errante caravana,
Se perde nos desertos, peregrina,
Buscando na cidade muçulmana,
Do sepulcro de Deus a vasta ruína,
Olha o sol que se esconde na savana,
Pensa em Jerusalém, sempre divina,
Morre feliz, deixando sobre a estrada
O marco miliário duma ossada.

Assim, quando essa turba horripilante,
Hipócrita sem fé, bacante impura,
Possa curvar-te a fronte de gigante,
Possa quebrar-te as malhas da armadura,
Tu deixarás na liça o férreo guante
Que há de colher a geração futura...
Mas, não...crê no porvir, na mocidade,
Sol brilhante do céu da liberdade.

Canta, filho da luz da zona ardente,
Desses cerros soberbos, altanados!
Emboca a tuba lúgubre, estridente,
Em que aprendeste a rebramir teus brados.
Levanta das orgias - o presente,
Levanta dos sepulcros - o passado,
Voz de ferro! desperta as almas grandes
Do sul ao norte...do oceano aos Andes!!...

Castro Alves
(1847-1871)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

sexta-feira, julho 17, 2009

Murilo Mendes descobre que o amor também separa. E lamenta, mas nada pode fazer.


O amor separa


Não estou contigo mesma.
Até hoje não te vi.
Te penetrei toda.
Conheci o retrato de tua mãe,
Tua infância, tua vontade,
Te vi crescendo na rua, no colégio,
Vi teu sangue, entrei no teu corpo,
Mas não estou ligado a ti mesma.
Meu espírito não soprou no teu corpo,
Não te fez renascer.

Não posso te julgar,
Nosso amor nos separou.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Ana Cristina Cesar está a ponto de partir. Ela já sabe que os olhos deles sorriem na distância.


A ponto de partir


A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

quinta-feira, julho 16, 2009

Não me deixem ir tão só, tão só. Eu quero um renque de vozes por toda a margem do rio, pede Mario Quintana na outra canção.


Outra canção


Não me deixem ir tão só,
Tão só, transido de frio...
Eu quero um renque de vozes
Por toda a margem do rio!
Como alguém que adormecendo
E umas vozes escutando,
Nem soubesse que as ouvia,
Nem soubesse que as ouvia
Ou se as estava sonhando,
Eu quero um renque de vozes
Por toda a margem do rio:
Vozes de amigo calor
Na lenta e escura descida
Como lanternas de cor
E aonde mais longe eu me for
(Quanto mais longe da vida!)
A borboleta perdida
Da tua voz, pobre amor...

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Maria Teresa Horta não é escrava de lamento nem tenta ferida de enfeite. Para ela, é um ponto de honra.


Ponto de honra


Não sou escrava
de lamento
nem tento ferida
de enfeite

nem uso a raiva
que tenho
como um alfange
no peito

Não talho o sangue
nas pedras

nem uso palavras
de ódio

e não quero anéis
de aceite
para enfeitar os meus olhos


Maria Teresa Horta

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

quarta-feira, julho 15, 2009

Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho. Nós o que nos supomos nos fazemos, na ode de Ricardo Reis.


Gozo sonhado


Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Nós o que nos supomos nos fazemos.
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me consumo.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso,
O Fado cumpre-se. Porém eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que de meu me é dado.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Quem virá ao meu encontro na rua que cruza com a minha? A vida mora nas esquinas, sabe Guilherme de Almeida a resposta.


Esquinas


Quem virá ao meu encontro
na rua que cruza com a minha?

Ângulos do acaso,
encruzilhadas do tempo,
cotovelos do espaço,
face a face com o inédito,
sustos com o irreconhecível,
encontros com o imprevisto:
esquinas do mundo.

A vida mora nas esquinas.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

terça-feira, julho 14, 2009

Filhos, melhor tê-los ou não tê-los? Apesar dos problemas, Vinicius chega à conclusão que coisa louca, que coisa linda são os filhos.


Poema enjoadinho


Filhos...Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Hoje me deu tristeza, confessa Adélia Prado. Ela sofreu três tipos de medo, acrescido do fato irreversível: não é mais jovem.


Dolores


Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrecido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentaram os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.

Uma tal esperança imploro a Deus.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

segunda-feira, julho 13, 2009

Cecília Meireles sente o denso bosque de impossíveis entre os namorados. E diante deles, as estátuas eternamente enlaçadas, profundamente amorosas.


Namorados


No degrau do inverno turno,
sentaram-se os namorados.
Vai crescendo entre os seus ombros
denso bosque de impossíveis,
com muitos ramos escuros.

Um denso bosque de espinhos
vai crescendo entre os seus lábios.
Pálidas palavras secas,
folhagem de despedidas,
sombra de confusa angústia
na curva jovem da boca,
no doce lugar dos beijos.
Tão perdidos, tão sozinhos
por interiores caminhos!

Diante deles, as estátuas,
eternamente enlaçadas,
gloriosamente desnudas,
profundamente amorosas,
com brilhos de primavera
no etéreo gesto de mármore...
(Festivos corpos de pedra!)

Nos namorados humanos,
o corpo é lento e pesado,
longa rede a escorrer lágrimas
nas vastas areias da alma...

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Mário de Sá-Carneiro ama Estela, a atriz, como nunca amou. Mas ela não o conhece nem conhecerá e nunca o amará.


A uma actriz


Amo-te, oh! formosa, oh! divinal mulher,
Oh! sol, oh! fada, oh! estrela, oh, Estela minha!
Do meu coração és tu a única rainha!

Por ti desafiava o próprio Lúcifer,
Os santos, Deus, o mundo...até o rei!
Amo-te Estela como nunca amei!
Só em ti penso, quando enfraquecer-me sinto
No meio d'esta vida em que não tenho fé!
Por ti, por ti, não julgues que te minto,
Crê que matava a minha mãe até!

Amo-te Estela com amor profundo
E tu nem me conheces (oh! como é o mundo!
Vê-se uma mulher e pela vez primeira
Atenta-se n'ela... é d'ela a nossa vida inteira!)

És uma célebre actriz por todos adorada,
Quando pisas o palco, Estela, fascinada
A platéia toda fica... e eu mais que ninguém
Louco... louco sim d'amor... e de furor também
Porque te adoro muito (não com 'sperança)
Oh! formosa, oh! divina, oh! gentil criança!

Vi-te no teatro, há tempo, inebriante
Uma peça representares. No mesmo instante
Como todos por ti, meu sol fui encantado!...
Nessa noute não dormi, em ti só eu pensei
E desde esse dia, Estela ouve:

Amei!...

O meu coração tinhas, sem querer, tu conquistado...

.......................................................................................

O teu olhar de fogo foi quem isto fez.

Eu não deixei um dia sabes de te ver
Estela, meu anjo e luz então desde essa vez!
Amo-te, amar-te-ei, oh! querida até morrer
Mas nunca, nunca; escuta: tu conhecerás
Quem isto sente e diz e...
nunca o amarás!

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

sábado, julho 11, 2009

Para Augusto dos Anjos, o amor da humanidade é uma mentira. E é por isto que em sua lira de amores fúteis poucas vezes ele fala.


Idealismo

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Schmidt chora pelos que não choram, pelos corações feridos, pelos indiferentes. E pelas almas que não conhecem a liberdade das lágrimas.


Soneto


Eu queria chorar pelos que não choram.
Eu queria chorar pelos olhos secos,
Pelos olhos que são fontes
Onde as mágoas se purificam e se libertam.

Eu queria chorar pelos corações feridos
E que sangram obscura e silenciosamente.
Eu queria chorar pelas almas mártires
Que estão invisivelmente entre nós.

Eu queria chorar pelos indiferentes
E pelos que escondem num sorriso
As decepções de uma incompreendida bondade.

Eu queria chorar pelas almas fechadas,
Pelas almas que são como os desertos
E que não conhecem a liberdade das lágrimas.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

sexta-feira, julho 10, 2009

Em 1925, o modernista Oswald de Andrade já cantava a importância dos prazeres da alma. E diante da vitrola, exigia: discos a todos os preços.


Música de manivela


Sente-se diante da vitrola
E esqueça-se das vicissitudes da vida
Na dura labuta de todos os dias
Não deve ninguém que se preze
Descuidar dos prazeres da alma
Discos a todos os preços

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

Era dela a fome insatisfeita que o poeta sentiu. Fome do instinto que não foi ouvido, diz Miguel Torga em seu belo poema de amor.


Poema melancólico a não sei que Mulher


Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Miguel Torga
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

quinta-feira, julho 09, 2009

Em versos, Manuel Bandeira declara sua paixão à mulher amada. Do nascer do desejo até o sentimento se mudar em doce e grave adoração.


Ingênuo enleio


Ingênuo enleio de surpresa,
Sutil afago em meus sentidos,
Foi para mim tua beleza,
A tua voz nos meus ouvidos.

Ao pé de ti, do mal antigo
Meu triste ser convalesceu.
Então me fiz teu grande amigo,
E teu afeto se me deu.

Mas o teu corpo tinha a graça
Das aves...Musical adejo...
Vela no mar que freme e passa...
E assim nasceu o meu desejo.

Depois, momento por momento,
Eu conheci teu coração.
E se mudou meu sentimento
Em doce e grave adoração.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Sophia de Mello Breyner diz que no poema ficou o fogo mais secreto. O fogo que esteve sempre muito longe e muito perto.


No poema


No poema ficou o fogo mais secreto
O intenso fogo devorador das coisas
Que esteve sempre muito longe e muito perto.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

quarta-feira, julho 08, 2009

Afinal o que quero é fé, é calma, e não ter estas sensações confusas. Deus que acabe com isto, implora Álvaro de Campos no desespero de uma viagem.


Opiário


Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de entêrro.

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O fato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia p'la coleira!

Porque isto acaba mal e há de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pro fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há de me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pro centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a ...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!

(No Canal de Suez, a bordo)

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Nas palmas de tuas mãos leio as linhas da minha vida. E, desde então, caminhamos juntos pela vida, diz Cora Coralina na busca de seu destino.


Meu destino


Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos.
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

terça-feira, julho 07, 2009

Em momento todo especial, Ferreira Gullar se questiona sobre a condição de poeta. Que se passa poeta? Adiaste o futuro?


Omissão


I

Não é estranho
que um poeta político
dê as costas a tudo e se fixe
em três ou quatro frutas que apodrecem
num prato
em cima da geladeira
numa cozinha da Rua Duvivier?

E isso quando vinte famílias
são expulsas de casa na Tijuca,
os estaleiros entram em greve em Niterói
e no Atlântico Sul começa
a guerra das Malvinas.

Não é estranho?
por que então
mergulho nessa minicatástrofe
doméstica
de frutas que morrem
e que nem minhas parentas são?
por que
me abismo
no sinistro clarão dessas formas
outrora coloridas
e que nos abandonam agora inapelavelmente
deixando a nossa cidade
com suas praias e cinemas
deixando a casa
onde frequentemente toca o telefone?
para virar lama.

II

É compreensível que tua pele se ligue à pele dessas frutas que apodrecem
pois ali
há uma intensificação do espaço, das forças
que trabalham dentro da polpa
(enferrujando na casca
a cor
em nódoas negras)
e ligam
uma tarde a outra tarde e a outra ainda
onde
bananas apodreceram
subvertendo a ordem da história humana, tardes
de hoje e de ontem
que são outras cada uma em mim
e a mesma talvez
no processo noturno da morte nas frutas
e que te ligam a ti através das décadas
como um trem que rompe a noite
furiosamente dentro
e em parte alguma
- é compreensível
que dês as costas à guerra das Malvinas
à luta de classes
e te precipites nesse abismo
de mel
que o clarão do açúcar nos cega
e diverte ser espectador da morte, que é também a nossa,
e que nso atrai com sua boca de lama sua vagina
de nada
por onde escorregamos docemente no sono
e é bom morrer
no teatro
vendo morrer
pêras ardendo
na sua própria fúria
e urinando
e afundando em si mesmas
a converter-se em mijo, a pêra, a banana ou o que seja
e assistes
à hecatombe
no prato
sob uma nuvem de mosquitos
e não ouves o clamor da vida
aqui fora
na rua na fábrica na favela do Borel
não ouves
o tiro que matou Palito
e não ouves, poeta,
o alarido da multidão que pede emprego
(são dois milhões sem trabalho
há meses
sem ter como dar de comer à família
e cuja história
é assunto arredio ao poema).

É a morte que te chama?
É tua própria história
reduzida ao inventário de escombros
no avesso do dia
e não mais esperança
de uma vida melhor?
que se passa, poeta?
adiaste o futuro?

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

segunda-feira, julho 06, 2009

Em sua canção pensativa, Lya Luft sente um toque da solidão. E um dedo severo a traz à realidade.


Canção pensativa


Um toque da solidão, e um dedo
severo me traz à realidade: não depender
dos meus amores, não me enfeitar
demais com sua graça, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho.

Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se nesse leito frio e branco
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente
levanta-se paredes para sempre.

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)

Lya Luft

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domingo, julho 05, 2009

Tudo quanto sonhei tenho perdido antes de o ter. E um verso ao menos fique do inobtido, música de perder, no lamento de Fernando Pessoa.


Tudo quanto sonhei tenho perdido


Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.

Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.

A ti talvez, que não te têm dado.
Darão enfim...
A mim...Sei que eu que duro e inato fado
Me espera a mim?

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Manoel de Barros não tem bens de acontecimentos. E o que não sabe fazer, desconta nas palavras.


Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada


I
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

sábado, julho 04, 2009

Em um de seus mais belos sonetos, Camões queixa-se do amor que tão mal lhe trata. E diz que o arrepender da mulher amada será sua maior vingança.


Se as penas com que Amor tão mal me trata


Se as penas com que Amor tão mal me trata
quiser que tanto tempo viva delas
que veja escuro o lume das estrelas,
em cuja vista o meu se acende e mata;

e se o tempo, que tudo desbarata,
secar as frescas rosas sem colhê-las,
mostrando a linda cor das tranças belas
mudado de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado
o pensamento e aspereza vossa,
quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
em tempo quando executar-se possa
em vosso arrepender minha vingança.

Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

De que riem os poderosos? Na pergunta de Affonso Romano de Sant'Anna, a resposta para tanta coisa que já vimos, estamos vendo e ainda podemos ver.


De que riem os poderosos?


De que riem os poderosos?
tão gordos e melosos?
tão cientes e ociosos?
tão eternos e onerosos?

Por que riem atrozes
como olímpicos algozes,
enfiando em nossos tímpanos
seus alaridos e vozes?

De que ri o sinistro ministro
com sua melosa angústia
e gordurosa fala?
Por que tão eufemístico
exibe um riso político
com seus números e levíticos,
com recursos estatísticos
fingindo gerar o gênesis,
mas criando o apocalipse?

Riem místicos? ou terrenos
riem, com seus mistérios gozosos,
esses que fraudulentos
se assentam flatulentos
em seus misteres gasosos?

Riem sem dó? em dó maior?
ou operísticos gargalham
aos gritos como gralhas
até ter do no peito,

até dar nó nas tripas
em desrespeito?
Ah, como esse riso de ogre
empesteia de enxofre
o desdejum do pobre.

Riem à tripa forra?
riem só com a boca?
riem sobre a magreza dos súditos
famintos de realeza?
riem na entrada
e riem mais
- na sobremesa?

Mas se tanto riem juntos
por que choram a sós,
convertendo o eu dos outros
num cordão de trinta nós?

Affonso Romano de Sant'Anna

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

quinta-feira, julho 02, 2009

Como nos enganamos fugindo ao amor, pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM. Na declaração de Drummond, o reconhecimento do amor.


Reconhecimento do amor


Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.

Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez - sem o perceber, juro -
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas histórias não formuladas
ao caos universal.

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em docura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.

Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos tarnsmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
a revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

No belo soneto de Bocage, amor ou desfalece, ou pára, ou corre. E segundo as diversas naturezas, um porfia, este esquece, aquele morre.


Nascemos para amar - Soneto LXXII


Nascemos, para amar; a humanidade
Vai tarde ou cedo aos laços da ternura.
Tu és doce atrativo, ó formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão nalma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na idéia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;
e segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)

Mais sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Maria_Barbosa_du_Bocage

quarta-feira, julho 01, 2009

Mentira ou verdade? Mario Quintana tem a resposta.


Mentira?


A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Só, irremediavelmente só, todos passam por ele e ninguém o conhece. É assim que se sente o homen só, no poema de António Gedeão.


Poema do homem só


Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços,
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.

António Gedeão
(1906-1927)

Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho