domingo, agosto 31, 2008

Para Quintana, era a flor da morte e era uma canção tão linda que só se poderia ler dançando. Era uma pobre canção, ingênua e frágil, que nada dizia.


A canção


Era a flor da morte
E era uma canção...

Tão linda que só se poderia ler dançando.

E que nada dizia
Em sua graça ingênua
Dos subterrâneos êxtases e horrores em que estavam mergulhadas as suas raízes...
Mas estava fragilmente pintada sobre o véu do silêncio

Onde a morte jazia com os seus cabelos esparsos
Com os seus dedos sem anéis
Com os seus lábios imóveis

E que talvez houvessem desaprendido para sempre até as sílabas com que outrora pronunciavam meu nome...
Onde a morta jazia, na sua misteriosa ingratidão!

Era uma pobre canção,
Ingênua e frágil,
Que nada dizia...


Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

De Hilda Hilst & Zeca Baleiro, na voz de Jussara Silveira, "Ode Descontínua e Remota, para Flauta e Oboé, de Ariana para Dionísio, Canção IV".



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Canção IV

Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante

Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.

Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada verso
Mas outra

Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente

E por isso talvez
Te aborreças de mim.

Hilda Hilst

(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

Afonso Romano de Sant'Anna e a indecisão amorosa. Uma situação muitas vezes vivida por todos nós, ou não?


Indecisão amorosa


- Então me digo:
"Não vou mais vê-la
e no dia seguinte
quero tê-la.

Então me digo:
- "É a última vez"
e me resigno.
Mas quando anoitece
sou eu quem ligo.

- "Começo a esquecê-la",
me repito.
E numa esquina
invento vê-la.

De novo afirmo:
Melhor parar
e aí começo
a desesperar.

O tempo todo
a estou deixando
e mais a deixo
partido
ao seu amor regresso
e partindo
vou ficando.

Afonso Romano de Sant'Anna

Mais sobre Afonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

sábado, agosto 30, 2008

Quando estás vestida, ninguém imagina os mundos que escondes sob as tuas roupas. Mas nua, nua, nua, me sorri tua alma, diz Bandeira ao seu amor.


Nu


Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.

(Assim quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.

Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite.

Brilham teus joelhos
Brilha o teu umbigo.
Brilha toda a tua
Lira abdominal.

Teus seios exiguos
- Como na rijeza
Do tronco robusto
Dois frutos pequenos -

Brilham.) Ah teus seios!
Teus duros mamilos!
Teu dorso! Teus flancos!
Ah, tuas espáduas!

Se nua, teus olhos
Ficam nus também;
Teu olhar mais longo,
Mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto
Baixo num mergulho
Perpendicular!

Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tua alma,
Nua, nua, nua.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Quando a noite pare em sangue a madrugada, a prostituta chora as lágrimas todas de seus olhos. Em versos, Paulo Mendes Campos sofre e chora com ela.


A prostituta


Quando a noite pare em sangue a madrugada
As constelações se desorganizam
As nuvens se encapelam
Quando os guindastes do porto se espreguiçam
Os muros do fortim alvejam
O caçador submarino já pode olhar nos olhos
O mero adormecido
Quando a fome come a criança da colina suja
Os bichos humanos chegam à lavoura farejando a névoa
Os passageiros do ar visitam a lua nova
O seringueiro não sorri
O porco não sorri
Não sorri não sabe rir nunca soube rir
Como não sabe rir a formiga
O pedregulho
O mendigo
O bode rupestre da falésia aguilhoada
Quando a noite se encerra e há uma pausa
O membro do marido emurchece no lençol
Quando o Nilo estende as suas barbas velhas ao sol
Quando o Rio Amarelo silenciosamente dá as cartas
O Don abre seus braços aos trigais
O Amazonas apodrece
Quando o riacho acorda o homem descalço
Quando o rio todos os rios vão recuperando a memória
E contam sussurrando
A história do mastim do lorde
O chicote do dono
A botina do polícia
O gancho do corsário
O milionário tumefato com uma luz no ventre
A metamorfose do chacal
Quando os rios se recordam
E vão contando
Sussurrando
Conspirando
Enlaçando as cidades frias e cálidas
Enlaçando os campos
Como no tempo de faraós posessos que uivavam
Dos profetas de longas barbas sujas
Como no tempo dos cantochões do convento
Do archote ao pé do cadafalso
Milhões de homens milhões de batalhas milhões de febres
Milhões
Milhões de ratazanas históricas
De escravos
De crucificados
É quando
O rio se lembra com dificuldade
(Ela que foi pura)
E que vai cuspindo restos de lágrimas e lama
E se envergonha e quer morrer
É quando a prostituta se entreabe sobre a cama
E se fecha
E fica surda ao apelo do rio
E se entreabre devagar
E se fecha
Tímida flor que provocasse a náusea
Sentreabrindo
Se fechando
Opaca surda grossa
Na menstruação dolorosa de um grito que se fecha
No retraimento obsceno de um membro que emurchece
Então é quando a prostituta deveria sentar-se à margem do Hudson
E chorar
Chorar as lágrimas todas de seus olhos
De seus ouvidos
De suas narinas
De sua vagina
De suas mãos, de seus pés
Chorar as vezes que não chorou
Chorar o sangue o mênstruo o leite
Chorar como os rios choram sem tempo e surdos
Como o Conde Ugolino
As santas estigmatizadas
Chorar como choram os mendigos
Um pranto sujo
Um mênstruo rude
Um leite envenenado

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

Em versos até singelos, toda a fascinação de Machado de Assis pelo seu grande amor. Tanto era o amor que um sono puro o tomou da vida.


Fascinação


A vez primeira que te ouvi dos lábios
Uma singela e doce confissão,
E que travadas nossas mãos, eu pude
Ouvir bater teu casto coração,

Menos senti do que senti na hora
Em que, humilde - curvado ao teu poder,
Minha ventura e minha desventura
Pude, senhora, nos teus olhos ler.

Então, como por vínculo secreto,
Tanto no teu amor me confundi,
Que um sono puro me tomou da vida
E ao teu olhar, senhora, adormeci.

É que os olhos, melhor que os lábios, falam
Verbo sem som, à alma que é de luz.
- Ante a fraqueza da palavra humana -
O que há de mais divino o olhar traduz.

Por ti, nessa união íntima e santa,
Como a um toque de graça do Senhor,
Ergui minh'alma que dormiu nas trevas,
E me sagrei na luz do teu amor.

Quando a tua voz puríssima - dos lábios,
De teus lábios já trêmulos correu,
Foi alcançar-me o espírito encantado
Que abrindo as asas demandara o céu.

Mas, se é certo que a baça mão da morte
A outra vida melhor nos levará,
Em Deus, minh'alma adormeceu contigo,
Em Deus, contigo um dia acordará.

Machado de Assis
(1839-1908)

Mais sobre Machado de Assis em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

quinta-feira, agosto 28, 2008

No lindo poema de Carlos Drummond de Andrade, eterno é o amor que une e separa. Para ele, o esquecimento ainda é memória, eterno é o fim.


Permanência


Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

Dia virá em que nenhum será lembrado.

Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

No poema de Bertolt Brecht, as respostas para as perguntas de um trabalhador que lê. Tantas histórias, tantas questões.


Perguntas de um trabalhador que lê


Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão os nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída -
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China
ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bisâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária
Atlântida
Os que se afogavam gritavam por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?.
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Felipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://en.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Para Cora Coralina, não são os filhos que nos devem, são os pais que devem a eles.E explica tudo em versos, até a ameaça terrível da maldição da mãe.


Pai e filho


Não são os filhos que nos devem. São os pais que devem a eles.
Estatuto do passado. Resquício do Pater Familias
do Direito Romano - O Pai tem todos os direitos
e o filho, todos os deveres.
Assim era, assim foi.
Hoje, sem precisar leis, nem decretos, nem códigos, pela força
da evolução humana, através de séculos, vencendo resistências,
ab-rogando artigos e parágrafos, se fez o inverso.
O Pai tem todos os deveres e o filho todos os direitos.
Princípio de justiça incontestado pelos próprios pais
e juízes destes tempos novos.

Nego o amor dos pais dos passados, salvante exceções.
O que eles sentiam era o orgulho da posse, o domínio sobre sua descendência.
Tudo, todos, judiciários e adultos. Sua hermenêutica
sutil de leis, interpretação, a favor dos adultos.
Os adultos, pai ou mãe, levavam sempre o melhor. Aí estão os inventários
antigos. Os velhos autos comprovando interesses mesquinhos, fraudes,
despojando filhos menores, indefesos, de bens a eles devidos.
Na casa antiga, castigos corporais e humilhantes, coerção,
atitudes impostas, ascendência férrea, obediência cega.
Filhos foram impiedosamente sacrificados e despojados.
E para alguma rebeldia indomável, lá vinha a ameaça terrível, impressionante
da maldição da mãe, a que poucos resistiam.
Do resto prefiro não esmiuçar.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Ferreira Gullar introduz na poesia a palavra Diarréia, a bomba suja. Para dentro de cada homem, trocar a arma da fome pela arma da esperança.


A bomba suja


Introduzo na poesia
A palavra diarréia.
Não pela palavra fria
Mas pelo que ela semeia.

Quem fala em flor não diz tudo.
Quem me fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.

No dicionário a palavra
é mera idéia abstrata.
Mais que palavra, diarréia
é arma que fere e mata.

Que mata mais do que faca,
mais que bala de fuzil,
homem, mulher e criança
no interior do Brasil.

Por exemplo, a diarréia,
no Rio Grande do Norte,
de cem crianças que nascem,
setenta e seis leva à morte.


É como uma bomba D
que explode dentro do homem
quando se dispara, lenta,
a espoleta da fome.

É uma bomba-relógio
(o relógio é o coração)
que enquanto o homem trabalha
vai preparando a explosão.

Bomba colocada nele
muito antes dele nascer;
que quando a vida desperta
nele, começa a bater.

Bomba colocada nele
Pelos séculos da fome
e que explode em diarréia
no corpo de quem não come.

Não é uma bomba limpa:
é uma bomba suja e mansa
que elimina sem barulho
vários milhões de crianças.

Sobretudo no nordeste
mas não apenas ali
que a fome do Piauí
se espalha de leste a oeste.

Cabe agora perguntar
quem é que faz essa fome,
quem foi que ligou a bomba
ao coração desse homem.

Quem é que rouba a esse homem
o cereal que ele planta,
quem come o arroz que ele colhe
se ele o colhe e não janta.

Quem faz café virar dólar
e faz arroz virar fome
é o mesmo que põe a bomba
suja no corpo do homem.

Mas precisamos agora
desarmar com nossas mãos
a espoleta da fome
que mata nossos irmãos.

Mas precisamos agora
deter o sabotador
que instala a bomba da fome
dentro do trabalhador.

E sobretudo é preciso
trabalhar com segurança
pra dentro de cada homem
trocar a arma de fome
pela arma da esperança.


Ferreira Gullar


Mais sobre Ferreira Gullar em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Para Augusto Frederico Schmidt, ela não é apenas o seu amor. Ela é tantas coisas, é tudo que é simples e tranquilo, é o bom fogo que Deus lhe deu.


Poesia a galope


Não és apenas o meu amor:
És meu trigo batido,
És a substância de meu pão.

Não és apenas o meu amor,
Mas o calor volta contigo
E voltam as flores sorrindo na terra.

Não és apenas o meu amor:
És uma janela sobre a alba
E me dás pássaros e música.

Não és apenas o meu amor:
És o fim da grande caminhada
Com as primeiras paisagens amigas.

Não és apenas o meu amor:
És a infância madura, o silêncio
Cheio de música, a primeira palpitação,
O sinal da pequena esperança sorrindo
Depois de um longo tempo impenetrável.
E tudo que é simples e tranqüilo:
És o bom fogo que Deus me deu.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt



O belo amor revolucionário de Mayakovski: que ao primeiro apelo de Camaradas, a família seja o pai, pelo menos o universo, a mãe, pelo menos a terra.


O amor


Um dia, quem sabe,
ela que também gostava de bichos,
apareça numa alameda de zoo,
sorridente,
tal como agora está no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela, que por certo, hão de ressuscitá-la
Vosso Trigésimo século ultrapassará o exame de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então, de todo amor não terminado
seremos pagos em enumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo cotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo de csamentos,
concuspicência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que ao primeiro apelo:
- Camaradas!
Atenta se volte à terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o universo,
a mãe,
pelo menos a terra.

Vladimir Mayakovski
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky

terça-feira, agosto 26, 2008

A dialética de Murilo Mendes nos ensina que tudo vive em transformação. E que tudo marcha para a arquitetura perfeita: a aurora é coletiva.


Poema dialético


1

Todas as formas ainda se encontram em esboço,
Tudo vive em transformação:
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.

Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga:
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.

2

Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.

Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade do mundo.

Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em planos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.

3

A muitos só lhes resta o inferno.
?Que lhes coube na monstruosa partilha da vida
Sente uma angústia sem nobreza, e a peste da alma.
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror,
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos,
Comeram o pó e beberam o próprio suor,
Não se banharam no regato livre.
Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve assumi-la em carne e espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.

4

É preciso conhecer seu próprio abismo
E polir sempre o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída em tempo à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita:
A aurora é coletiva.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

O outro sabia, tinha uma certeza, sou eterno, dizia. Eugénio de Andrade não tinha nada, mas amou o desejo com o corpo todo.


Quase epitáfio


O outro sabia.
Tinha uma certeza.
Sou eterno, dizia.

Eu não tenho nada.
Amei o desejo
com o corpo todo.

Ah, tapai-me depressa.
A terra me basta.
Ou o lodo.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

Deixa que o levem agora, a mulher cristã da sala já quer ir embora. Roxo é a cor da morte, no sombrio poema de Guimarães Rosa.


Roxo


Deixa que o levem, agora,
que a mulher cristã da sala
já quer ir embora...
Ela desceu dos teus olhos de choro,
magnética e profunda, como um rastro
de ametistas mortas...
Passou pelas olheiras fundas,
pousou nos ramalhetes de saudades,
tocou nas fitas das coroas, longas
como equimoses...
E agora, vê: vai passeando,
de leve, pelos lábios, pelo rosto,
pelo corpo,
pelos dedos, duros do teu esposo morto...
Ela quer ir embora...
Deixa que o levem, agora...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

domingo, agosto 24, 2008

Entre ser, ter e amar, o testemunho da vida na poesia de Thiago de Mello. Ele sente que sofredor grandioso só mesmo o coração, pois nele cabe Deus.


O testemunho


I - Ser

Num campo de silêncio,
onde pastam manhãs,
estou - sempre que sou.

Quis-me o campo por senda:
em meu lúcido passo,
entanto, lá não vou.

Atendo a um chamamento
feroz, tímido e brando:
são vozes maduras.

Toda recusa é vã:
asas me erguem, e sou.
Ser é resposta. E dói.

É um campo de silêncio:
oh! palpitante berço
e pasto roçagante

de infinitas manhãs
que se cantam nascidas
para a noite do mundo.

De silêncio, e contudo
ali se escuta a dor
crescer, fingida em relva.

Essa relva me sabe.
O coração é a boca
que se crispa a seu travo.

Pasto dor e silêncio
no campo onde sou.

II - Ter

Dor sofrida é salário.

O amargo que mastigo
transmuda-se na moeda
com que me cumpro e compro

o segredo fecundo
adormecido há invernos
na boca das auroras.

Para erguê-las ao campo
de silêncio onde pastam
- e de onde me chamaram -,

antes entrego as mãos
às lâminas de brasa
que me buscam, ferozes:

matutinos orvalhos,
serenos de idas tardes,
sepultos semivivos.

Com essa dor se cunha
a moeda em cuja efígie
vê-se o perfil dos anjos.

Meu salário é meu júbilo:
ao regressar-me, esplendem
alvíssaras profundas

no momento em que entrego
ao mundo - envolta em cânticos -
humilde sempremanhã.

III - Amar

No campo de silêncio
onde, existindo, sou,
não me retardo. Tardo

a ser, e quando sou
- sou pouco. O muito é a dor.
As têmporas estalam.

O tempo que ficou
e, aquém de mim, me espera
reclama o existir turvo.

Então, perdido, torno,
a caminho transbordo,
transvio-me de mim:

quando chego, sou pouco.
Crestam-me a vida vã
saudades de ter sido.

A dor é eco longínquo
de grito soterrado.
O ser é estrela extinta,

lua de treva em céu
já desabado, pedra
lavada pela chuva.

Permaneço, contudo,
e comigo a amargura,
quando o amor é o caminho

que em mim se faz e faz-me
correr ao campo branco
onde alvoradas sonham,

onde me espera o pasto
onde a fome fareja
a dor antiga, eterna:

dor esplêndida e dura
- dor de ser e de amar.
Porque de amar, perdura.

E trago dessa viagem
uma treva mais doce
para a noite do mundo.

Às vezes é uma aurora
que me aclara também:
e vejo em amargor

a face que me coube,
a face dessa noite
noite tão noite e fria

que é minha e de meu mundo,
ai, mundo meu não mundo,
perdido, em pranto, e pouco.

O muito em mim, e grande,
e sofredor grandioso
- só mesmo o coração:
pois nele cabe Deus.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Eu me perdi na sordidez do mundo, eu me salvei na limpidez da terra. E nunca um navio da costa se afastou sem me levar, grita Sophia de Mello Breyner.


Eu me perdi


Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Busquei meu semelhante, andei a vida, o mundo, o tempo, o espaço. Nem minha própria sombra se parece comigo, diz a solidão de Guilherme de Almeida.


Solidão


Busquei meu semelhante.

Andei a vida,
andei o mundo,
andei o tempo,
andei o espaço.
Treva. Treva. Treva.
Acendi minha lâmpada.
Véu que saiu do meu corpo,
ritmo que saiu do meu gesto:
um crepe em võo
atirou-se no chão,
subiu pela parede,
debateu-se contra o teto.

Nem minha própria sombra
se parece comigo.


Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

sábado, agosto 23, 2008

A mais dolorosa das histórias, segundo Vinicius de Moraes. Mais do que ninguém, ele soube viver o amor e suas dores, as dores da vida.


A mais dolorosa das histórias

Silêncio
Façam silêncio
Quero dizer-vos minha tristeza
Minha saudade e a dor
A dor que há no meu canto

Oh, silenciai
Vós que assim vos agitais
Perdidamente em vão
Meu coração vos canta
A mais dolorosa das histórias
Minha amada partiu
Partiu

Oh, grande desespero de quem ama
Ver partir o seu amor

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Eu conheço a mais bela flor, és tu, rosa da mocidade. E antes que venha o mal, antes que chegue o inverno, colha-se a flor, canta Machado de Assis.


Flor da mocidade


Eu conheço a mais bela flor;
És tu, rosa da mocidade,
Nascida aberta para o amor.
Eu conheço a mais bela flor.
Tem do céu a serena cor,
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bela flor,
És tu, rosa da mocidade.

Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.
Teme acaso indiscreta mão;
Vive às vezes na solidão.
Poupa a raiva do furacão
Suas folhas de azul celeste.
Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.

Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno;
Que a flor morta já nada val.
Colhe-se antes que venha o mal.
Quando a terra é mais jovial
Todo o bem nos parece eterno.
Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno.

Machado de Assis
(1839-1908)

Mais sobre Machado de Assis em

O mundo acabando, podem ficar tranquilos. Segundo consta, acaba voltando tudo aquilo, diz Paulo Leminski.


Segundo consta


O mundo acabando,
podem ficar tranqüilos.
Acaba voltando
tudo aquilo.

Reconstruam tudo
segundo a planta dos meus versos.
Vento, eu disse como.
Nuvem, eu disse quando.
Sol, casa, rua,
reinos, ruínas, anos,
disse como éramos.

Amor, eu disse como.
E como era mesmo?

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

domingo, agosto 17, 2008

Pouco me importa, disse Alberto Caeiro. Por que? Pouco me importa também.


Pouco me importa


Pouco me importa.
Pouco me importa o que? Não sei: pouco me importa.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_pessoa

Eu sempre pensei que Fernando Pessoa escreveu este poema pensando em alguém como eu, ou como você, como nós. Mas, agora, o que adianta pensar na vida?


Para onde vai a minha vida e quem a leva?


Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala
Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito
Daquilo que faço e sou: não me iguala

Não me compreendo nem no que, compreeendendo, faço.
Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.
É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.
Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?
Além da minha alma, que outra alma há na minha?
Por que me destes o sentimento de um rumo,
Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

Senão com um uso não meu dos meus passos, senão
Com um destino escondido de mim nos meus atos?
Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?
Que sou entre quê e os fatos?

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!
Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,
Ao menos eu goze esse nada, sem fé, mas com calma,
Ao menos durma viver, como uma praia esquecida..."

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Vem, Noite igual por dentro ao silêncio. Vem, vagamente, vem, levemente, vem sozinha, vem buscar Álvaro de Campos que esta hora não sabe como viver.


Dois excertos de Ode

I

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso é inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranqüilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem.

A lua começa a ser real.

II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades
E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exata e precisa e ativa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um Ocidental"!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,
Que nem são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Umedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar ...

Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja idéia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a idéia de Deus
Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria
— Tu que me conheces — quem eu sou ...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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sábado, agosto 16, 2008

E a matéria se veja acabar: adeus composição que se chamou Carlos Drummond de Andrade. Em versos, o poeta dá adeus, adeus, vida aos outros legada.


Os últimos dias


Que a terra há de comer.
Mas não coma já.

Ainda se mova,
para o ofício e a posse.

E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.

Sinta frio, calor, cansaço:
pare um momento; continue.

Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.

O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.

Prazer de balanço, prazer de vôo.

Prazer de ouvir música;
sobre o papel deixar que a mão deslize.

Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.

Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra na chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.

O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.

De ver passar este conto: o vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito,
e cada folha é uma diferente.

E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.

Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um torso
de mil anos, recebe minha visita, prolonga
para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.

O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da vida ficou mais forte, e os naufrágios
não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas;
que os objetos continuam, e a trepidação incessante
não desfigurou o rosto dos homens;
que somos todos irmãos, insisto.

Em minha falta de recursos para dominar o fim,
entrentanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,
tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.

E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena amplo fulgurante, facho lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.

A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.
Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?

A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida.

Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.

E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus,
adeus, vida aos outros legada.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Nos versos de Adélia Prado, é descuidar, o amor te pega, te come, te molha todo.Tudo manha, truque, engenho, mas água o amor não é.


Corridinho


O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

Adélia Prado

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Não permita Deus que eu morra sem que volte pra São Paulo, sem que veja a Rua 15 e o progresso de São Paulo. Assim, Oswald canta a sua pátria.

Canto de regresso à Pátria

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.

Oswald de Andrade(1890-1954)

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sexta-feira, agosto 15, 2008

E esta minha ternura, meu Deus, oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada! Em seu lamento, Mario Quintana canta a dor dos romances perdidos.


Canção dos romances perdidos


Oh! o silêncio das salas de espera
Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...
O silêncio das salas de espera
E aquela última estrela...

Aquela última estrela
Que bale, bale, bale,
Perdida na enchente da luz...

Aquela última estrela
E, na parede, esses quadrados lívidos,
De onde fugiram os retratos...

De onde fugiram todos os retratos...

E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!...


Mario Quintana
(1906-1994)

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Rimando pudibunda com rubicunda, Bocage nos mostra o amor do século XVI. O tempo passa, mas o amor continua o mesmo do feliz casal de antão?


Levanta Alzira os olhos pudibunda

Levanta Alzira os olhos pudibunda
Para ver onde a mão lhe conduzia;
Vendo que nela a porra lhe metia
Fez-se mais do que o nácar rubicunda:

Toco o pentelho seu, toco a rotunda
Lisa bimba, onde Amor seu trono erguia;
Entretanto em desejos ardia,
Brando licor o pássaro lhe inunda:

C'o dedo a greta sua lhe coçava;
Ela, maquinalmente a mão movendo,
Docemente o caralho embalava:

"mais depressa" – lhe digo então morrendo,
Enquanto ela sinais do mesmo dava;
Mística pívia assim fomos comendo.

Manuel Maria Barbosa du Bocage

(1766-1805)

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Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá. Gonçalves Dias e o seu legado para todos nós.


Canção de Exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Gonçalves Dias

(1823-1864)

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quinta-feira, agosto 14, 2008

Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo que fui salvo.No meu morrer tem uma dor de árvore, confessa um tão ocaso Manoel de Barros.


Auto-Retrato Falado

Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.

Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.

Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,

aves, pessoas humildes, árvores e rios.

Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar

entre pedras e lagartos.

Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto

meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou

abençoado a garças.

Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que

fui salvo.

Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.

Os bois me recriam.

Agora eu sou tão ocaso!

Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço

coisas inúteis.

No meu morrer tem uma dor de árvore.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Meu coração que voava ficou surpreso e meu corpo retoma o que sempre fingiu ser. Ficamos à espera, minha vida e eu, que voltes, pede Lya Luft.


Canção com parênteses


Meu coração que voava
Ficou surpreso
A boca se fechou, a música
Descaiu num tom menor
Meu corpo que retornava
Ao que nunca tinha sido
(senão em nostalgia)
retoma o que sempre fingiu ser.

Ficamos à espera, minha vida e eu
(sem amargura mas desconcertadas)
de que apagues os parêntesis
e voltes, e te permitas
as ternuras, o encanto, as surpresas
que iluminava( como os meus)
teus próprios dias

Lya Luft

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Maldita sejas pelo ideal perdido, pelo mal que fizeste em querer, pelo amor que morreu sem ter nascido. Com dor, Bilac abre sua alma como um vulcão.



Maldição


Se por vinte anos, nesta furna escura,
Deixei dormir a minha maldição,
_ Hoje, velha e cansada da amargura,
Minha alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão...

Maldita sejas pelo ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!

Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...

Olavo Bilac
(1865-1918)

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quarta-feira, agosto 13, 2008

Neste lindo poema, Cecília Meireles não sabe de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor. Talvez, só para em nossa morte estar durando sempre.


O que amamos está sempre longe de nós


e longe mesmo do que amamos - que não sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.

O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
só para em nossa morte estar durando sempre.

Como as ervas do chão, como as ondas do mar,
os acasos se vão cumprindo e vão cessando.
Mas, sem acaso, o amor límpido e exato jaz.

Não necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equívoco do tempo, os jogos da cegueira

com setas negras na escuridão.


Cecília Meireles
(1901-1964)

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Cheio de amor, Leminski conhece sua cidade como à mulher amada, com enorme paixão. E sabe, na palma da mão, o quanto Curitiba significa em sua vida.


Curitibas


Conheço esta cidade
como a palma da minha pica.
Sei onde o palácio
sei onde a fonte fica.

Só não sei da saudade
a fina flor que fabrica.
Ser, eu sei. Quem sabe,
esta cidade me significa.

Paulo Leminsky
(1944-1989)

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Em versos, Sophia de Mello Breyner faz uma análise da política em seu querido Portugal. Mas sua pureza crítica traduz um sentimento de universalidade.


Nestes últimos tempos


Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo - de seu
Viscoso gozo da nata da vida - que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

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terça-feira, agosto 12, 2008

Em troca de tanta felicidade, Bandeira só queria repor, no coração despedaçado, as mais puras alegrias da infância dela. Se pudesse e soubesse repor.


O impossível carinho


Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero contar-te apenas a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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Quem dera fosse meu o poema de amor definitivo, diz em versos Alice Ruiz. Ela sabe que um sonho de poeta não vale o instante vivo.


Sonho do Poeta


Quem dera fosse meu
o poema de amor definitivo
Se amar fosse o bastante
poder eu poderia
pudera, às vezes,
parece ser esse
meu único destino
Mas vem o vento e leva
as palavras que digo minha canção de amigo. Um sonho de poeta
não vale o instante vivo.
Pode que muita gente
veja no que escrevo
tudo que sente
e vibre, e chore e ria como eu, antigamente, quando não sabia
que não há um verso, amor,
que te contente.

Alice Ruiz

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Já imaginou quantos enganadores estariam hoje empurrando carrinhos de mão se a proposta de Brecht fosse aceita? Quantos desses tagarelas você conhece?


Realizar algo de útil


Quando li que queimavam as obras
Dos que procuravam escrever a verdade
Mas ao tagarela George, o de fala bonita, convidaram
para abrir sua Academia, desejei mais vivamente
Que chegue enfim o tempo em que o povo solicite a um homem desses
Que num dos locais de construção dos subúrbios
Empurre publicamente um carrinho de mão com cimento, para que
Ao menos uma vez um deles realize algo de útil, com o que
Poderia então retirar-se para sempre
Para cobrir o papel de letras
Às custas do
Rico povo trabalhador

Bertolt Brecht
(1898-1956)

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sábado, agosto 09, 2008

Vinicius de Moraes tenta reconstruir do nada todo o martírio de uma paixão imensa. Mas no chão, tudo perdido, tudo desfeito, ficou a rosa despetalada.


A rosa desfolhada


Tento compor o nosso amor
Dentro da tua ausência
Toda a loucura, todo o martírio
De uma paixão imensa
Teu toca-discos, nosso retrato
Um tempo descuidado

Tudo pisado, tudo partido
Tudo no chão jogado
E em cada canto
Teu desencanto
Tua melancolia
Teu triste vulto desesperado
Ante o que eu te dizia
E logo o espanto e logo o insulto
O amor dilacerado
E logo o pranto ante a agonia
Do fato consumado

Silenciosa
Ficou a rosa
No chão despetalada
Que eu com meus dedos tentei a medo
Reconstruir do nada:
O teu perfume, teus doces pêlos
A tua pele amada
Tudo desfeito, tudo perdido
A rosa desfolhada

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes


Admiro o teu sonho, levas-me às estradas fora da cidade, onde vôo sobre o teu corpo. E volto a ser um camponês, diz Nuno Júdice ao seu amor.


Nova reforma agrária


Olho os teus olhos fechados,
ouço a tua respiração breve.
E sei que sabes que te vejo,
como tu sabes que eu o sei.

Admiro, meu amor, o teu sonho.
Levas-me para fora da cidade,
às estradas ermas dos arredores,
onde voo sobre o teu corpo.

E um outro nos aparece:
ramos, são os teus braços; flores,
as que nascem dos teus lábios;
corre um rio no vale entre os seios.

E volto a ser um camponês,
trabalhando a terra que me dás.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

De Hilda Hilst & Zeca Baleiro, na voz de Rita Ribeiro, "Ode Descontínua e Remota, para Flauta e Oboé, de Ariana para Dionísio, Canção I".



Link para download do poema no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/5135531-67c


Canção I


É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto.
Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

Hilda Hilst

(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst


sexta-feira, agosto 08, 2008

Inútil pedir perdão, o morto não ouve. De Ferreira Gullar, para bons entendedores meio poema basta.


O morto e o vivo


Inútil pedir
perdão
dizer
que o traz
no coração

O morto não ouve

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Mário de Sá-Carneiro em um poema sobre Amor ou Morte. Assim é a Vida, até para um poeta que tudo fez para se dizer maldito.


Amor ou morte


És formosa
Como a rosa
De manhã,
Graciosa
Caprichosa
Mui Louçã.

Repito tu és mui linda
Fascinante
Estonteante
Como outra não vi ainda.

Nutro por ti paixão viva
Só a ti no mundo adoro
Porém choro
Pois vejo que és mais esquiva
E oh! sim mas muito mais
Que a sensitiva!
E por isso solto ais
Lancinantes
Penetrantes.

Mas que tu oh! má não ouves
Ou finges não atender.
Com eles não te comoves
E sem dó vês-me sofrer.

Pois saiba minha flor
Se o meu amor não quiser
Minh'alma viver não quer...
Eu morrerei. Oh! horror
Então de tal desventura
A culpada
Serás tu oh! minha amada
Donzela tão linda e pura!

Serás ente criminoso
Indigno de compaixão
Farás um crime horroroso
Esfacelarás um coração!

E não será tão cruel
O mais cruel assassino
De instinto mais tigrino
Como tu pomba sem fel!


Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Vi todas as coisas numa coisa só e compreendi tudo desde o princípio do Mundo, disse em versos um apaixonado Dante Milano. Tudo pelo amor.


Corpo


Adorei teu corpo,
Tombei de joelhos.
Escostei a fronte,
O rosto, em teu ventre.
Senti o gosto acre
De santidade
Do corpo nu.
Absorvi a existência,
Vi todas as coisas numa coisa só,
Compreendi tudo desde o princípio do Mundo.

Dante Milano
(1899-1991)

Mais sobre Dante Milano em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

quinta-feira, agosto 07, 2008

Deixo-te aí sozinho, pobre menino, e é melhor que seja assim. Sonha, menino triste, só o teu sonho é que existe, diz Mario Quintana ao acordar.


Bola de cristal


A praça, o coreto, o quiosque,
as primeiras leituras, os primeiros
versos
e aquelas paixões sem fim...
Todo um mundo submerso,
com suas vozes, seus passos, seus silêncios
- ai que saudade de mim!
Deixo-te, pobre menino, aí sozinho...
Que bom que nunca me viste
como te estou vendo agora
- e é melhor que seja assim...
Deixo-te
com os teus sonhos de outrora, os teus livros queridos
e aquelas paixões sem fim!
e a praça...o coreto...o quiosque
onde compravas revistas...
Sonha, menino triste...
Sonha...
- só o teu sonho é que existe.


Mario Quintana
(1906-1994 )

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

A poesia não vai à missa e prefere atiçar os cães às pernas de deus e dos cobradores de impostos. Assim deve ser a poesia para Eugénio de Andrade.


A poesia não vai


A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do verão.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

Quando a dança dos encéfalos começa, a carne é fogo e a alma arde. E Augusto dos Anjos acha um feixe de forças sustentando dois monstros.


A dança da psiquê


A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos
- Mãe de esterelidades e cansaços -
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coréia
Pára. O cosmos sintético da Idéia
Surge. Emoções extraordinárias sinto...

Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixo de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!


Augusto dos Anjos
(1884-1914 )

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

quarta-feira, agosto 06, 2008

Não tenho mais palavras, gastei-as a negar-te. E só a negar-te eu pude combater o terror de te ver em toda parte, entristecido confessa Miguel Torga.


Desfecho


Não tenho mais palavras
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda parte,)
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão,
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo que te dizia...
Agora, somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a paz na teimosia.

Miguel Torga
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

Neste belo poema, é possível sentir que Menotti del Picchia sabia tudo das coisas do amor. Até o sofrimento que nem a piedosa mentira pode esconder.


Piedosa mentira


Ontem na tarde loura e de aquarela,
alguém me perguntou: "Como vai ela?
Como vai teu amor?" - Eu respondi:
"Não sei. Uma mulher passou na minha vida,
mas não lembro...". E nessa hora comovida,
como nunca lembrava-me de ti!

E menti por pudor...A mágoa que alvoroça
nosso peito é tão santa, tão pura, tão nossa
que se esconde aos demais.
E se uma voz indaga contristada:
"Estás sofrendo?" - "Não, não tenho nada..."
E é quando a gente sofre mais...


Menotti del Picchia
(1892-1988)

Mais sobre Menotti del Picchia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

Carlos Pena Filho sempre será lembrado pela sua poesia nada superficial e esguia, como no soneto que dedicou à Madame. Afinal, eternos eles não eram.


Soneto superficial e esguio como Madame

Madame, em vosso claro olhar, e leve,
navegam coloridas geografias,
azul de litoral, paredes frias,
vontade de fazer o que não deve

ser feito, por ser coisa de outras dias
vivida num instante muito breve,
quando extraímos sal, areia e neve
de vossas mãos, singularmente esguias.

Que eternos somos, dúvida não tenho,
nem posso abandonar minha planície
sem saber se em vós há o que em vós venho

buscar. E embora em nós tudo nos chame,
jamais navegarei a superfície
de vosso claro e leve olhar, Madame.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho