quinta-feira, julho 31, 2008

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas e sou fácil de definir, diz Alberto Caeiro.


Se depois de eu morrer


Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Abandonei-me ao vento como um grão, sem a opressão abandonei-me. Fiquei eterno, mas o amor guardou meu nome, diz Carlos Nejar em seu belo poema.


Abandonei-me ao vento


Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro livre, que me sabe

quando me levantar e o corpo solte
o meu despojo vão. Em toda parte
o vento há-de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.

E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.

Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.

Carlos Nejar

Mais sobre Carlos Nejar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

Vendo o vulto que desaparece no caminho extremo, Olavo Bilac sofre. Porque nem o pranto umedeceu os olhos dela, nem a comoveu a dor da despedida.


No meio do caminho


Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo...Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac








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quarta-feira, julho 30, 2008

Já que a vida é tão dolorosa e não sei dizer mais nada, com que prazer me desfolhava se eu fosse apenas uma rosa. Em versos, todo o amor de Cecília.


Se eu fosse apenas...


Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!
Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!
Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
- de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...

Cecília Meireles

(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Por que chorar, por que meu Deus? Feliz e pobre em seus versos, Augusto Frederico Schmidt ainda pergunta, por que chorar?


Por que chorar?


Por que chorar se o céu está róseo
Se as flores estão nas trepadeiras balançando,
ao sopro leve do vento?

Por que chorar se há felicidade nos caminhos,
Se há sinos batendo nas aldeias de Portugal?
Por que chorar se os meninos estão nos circos
Se a poesia está rolando nas pedras da serra do nunca mais?
Por que chorar se há clarinetes entardecendo
Se há missas no fundo do Brasil?
Por que chorar se há virgens morrendo
Se há doentes sorrindo
Se há estrelas no céu de junho
Por que chorar se há jasmins nos caminhos
E moças de branco namoradas
Por que chorar?
Por que - meu Deus, se estou feliz e pobre,
Feliz como os pobres desconhecidos dos hospitais
Feliz com os cegos para quem a luz é mais bela do que a luz

Feliz como os mendigos alimentados
Feliz como os desamados que tiveram um beijo
Feliz como as velhas dançarinas aplaudidas de repente
Feliz como um prisioneiro dormindo
Por que chorar?


Augusto Frederico Schmidt

(1906-1965)


Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt


Castro Alves jamais imaginou ser motivo de uma declaração de amor tão bela e intensa de uma apaixonada Adélia Prado. Para sempre dele.


Bilhete em Papel Rosa



A meu amado secreto, Castro Alves.

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo".
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo tão é negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

terça-feira, julho 29, 2008

João Gostoso bebeu, cantou e dançou antes de se atirar na Lagoa Rodrigo de Freitas. E a notícia de sua morte se fez poema em Manuel Bandeira.


Poema tirado de uma noticia de jornal


João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Cora Coralina sofre com a situação dos menores abandonados. Mas ainda tem a esperança de que um dia esse crime deixe de envergonhar a todos nós.


Menor abandonado



Versos amargos para o
Ano Internacional da Criança, 1979.


De onde vens, criança?
Que mensagem trazes de futuro?
Por que tão cedo esse batismo impuro
que mudou teu nome?

Em que galpão, casebre, invasão, favela,
ficou esquecida tua mãe?...
E teu pai, em que selva escura
se perdeu, perdendo o caminho
do barraco humilde?...

Criança periférica rejeitada...
Teu mundo é um submundo.
Mão nenhuma te valeu na derrapada.

Ao acaso das ruas – nosso encontro.
És tão pequeno... e eu tenho medo.
Medo de você crescer, ser homem.
Medo da espada de teus olhos...
Medo da tua rebeldia antecipada.
Nego a esmola que me pedes.
Culpa-me tua indigência inconsciente.
Revolta-me tua infância desvalida.

Quisera escrever versos de fogo,
e sou mesquinha.
Pudesse eu te ajudar, criança-estigma.
Defender tua causa, cortar tua raiz
chagada...

És o lema sombrio de uma bandeira
que levanto,
pedindo para ti – Menor Abandonado,
Escolas de Artesanato – Mater et Magistra
que possam te salvar, deter a tua queda...

Ninguém comigo na floresta escura...
E o meu grito impotente se perde
na acústica indiferente das cidades.

Escolas de Artesanato para reduzir
o gigantismo enfermo
da criança enferma
é o meu perdido s.o.s.

Estou sozinha na floresta escura
e o meu apelo se perdeu inútil
na acústica insensível da cidade.
És o infante de um terceiro mundo
em lenta rotação para o encontro
do futuro.


Há um fosso de separação
entre três mundos.
E tu – Menor Abandonado,
és a pedra, o entulho e o aterro
desse fosso.

Quisera a tempo te alcançar,
mudar teu rumo.
De novo te vestir a veste branca
de um novo catecúmeno.
És tanto e tantos teus irmãos
na selva densa...

E eu sozinha na cidade imensa!
“Escolas de ofícios Mãe e Mestra”
para tua legião.
Mãe para o amor.
Mestra para o ensino.

Passa, criança... Segue o teu destino.
Além é o teu encontro.
Estarás sentado, curvado, taciturno.
Sete “homens bons” te julgarão.
Um juiz togado dirá textos de Lei
que nunca entenderás.

- Mais uma vez mudarás de nome.
E dentro de uma casa muito grande
e muito triste – serás um número.

E continuará vertendo inexorável
a fonte poluída de onde vens.

Errante, cansado de vagar,
dormirás como um rafeiro
enrodilhado, vagabundo, clandestino
na sombra das cidades
que crescem sem parar.

Há um fosso entre três mundos.
E tu, Menor Abandonado,
és o entulho, as rebarbas e o aterro
desse fosso.

Acorda, Criança,
hoje é o teu dia... Olha, vê como brilha lá longe,
na manchete vibrante dos jornais,
na consciência heróica dos juízes,
no cartaz luminoso da cidade,
o ano internacional da criança.


Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Castro Alves se entregou por inteiro à luta contra a escravidão. Em Vozes d'Africa, dirigiu toda sua revolta diretamente a Deus, sem intermediários.


Vozes d'África


Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
- Infinito: galé! ...
Por abutre - me deste o sol candente,
E a terra de Suez - foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
- Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista - corta o mármor de Carrara;
Poetisa - tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela - doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz. . . "

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim ...
Onde branqueia a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!

Foi depois do dilúvio... um viadante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...
- Serei tua Eloá. . . "

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir - Judeu maldito -
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa - arrebatada -
Amestrado falcão! ...

Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos - alimária do universo,
Eu - pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...


Castro Alves
(1847-1861)

Mais sobre Castro Alves em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

segunda-feira, julho 28, 2008

Para Mario Quintana, o poeta canta a si mesmo porque o seu coração é uma porta batendo a todos os ventos do universo. E porque de si mesmo é diverso.


O poeta canta a si mesmo


O poeta canta a si mesmo
porque nele é que os olhos das amadas
têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

O poeta canta a si mesmo
porque num seu único verso
pende - lúcida, amarga -
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Porque o seu coração é uma porta batendo
a todos os ventos do universo.

Porque além de si mesmo ele não sabe nada
ou que Deus por nascer está tentando agora
ansiosamente respirar
neste seu pobre ritmo disperso!

O poeta canta a si mesmo
porque de si mesmo é diverso.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana


Sophia de Mello Breyner caminhou no hospital, onde o branco é desolado e sujo. Lá, ela viu a luz como cinza na parede e a dor absurda e desmedida.


O hospital e a praia


E eu caminhei no hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é cinza

E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor
Nem lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra
E isso inteiramente me bastava

E nos espaços da manhã marinha
Quase livre como um deus caminhava

E todo o dia vivi como uma cega

Porém no hospital eu vi o rosto
Que não é pinheiral nem rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida


Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Gosto de ti, caranguejo. Para as luas do amor, quero aprender contigo, fazer como fazes, que só sabes recuar, diz Guimarães Rosa em um poema triste.


Caranguejo


Caranguejo feiíssimo,
monstruoso,
que te arrastas na areia
como a miniatura
de um tanque de guerra...
Gosto de ti, caranguejo,
Câncer meu padrinho
nas folhinhas,
pois nasci sob as bênçãos do teu signo
zodiacal...

Teu par de puãs cirúrgicas oscila
à frente do escudo lamaçento
de velho hoplita.
E mais oito patas, peludas,
serrilhadas,
de crustáceo nobre,
retombam no mole desengonço
de pés e braços muito usados,
desarticulados,
de um bebê de celulóide.

Caranguejo sujo,
desconforme,
como um atarracado Buda roxo
ou um ídolo asteca...

És forte e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres evoluídos,
misantropos, retraídos,
o filósofo, o asceta,
o cágado, o ouriço, o caracol...

Caranguejo hediondo,
de armadura espessa,
prudente desertor...
Para as luas do amor, quero aprender contigo,
quero fazer como fazes, animalejo frio,
que, tão calcariamente encouraçado,
só sabes recuar...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Guimar%C3%A3es_Rosa

domingo, julho 27, 2008

De tanto amor é que, um dia, em teu corpo hei de morrer de amar mais do que pude. Assim é o amor total, segundo Vinicius de Moraes.


Soneto do Amor Total


Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Thiago de Mello sofre ao ver a marca suja da miséria na manhã do milênio novo. Afinal, de que valeram as palavras que proferiu na trova da esperança?


Na manhã do milênio


De que valeu o assombro indignado
e esta perseverança que me acende
em pleno dia a estrela que me guia,
seguro do meu chão e do meu sonho?
De que valeram todos os prodígios
da ciência mergulhando nas funduras
mais escuras da terra e dominar
jamais imaginadas vastidões
para encontrar a luz fossilizada?
Do que valeu meu passo peregrino
pelo tempo, meu grito solidário,
a entrega ardente, o castigo injusto,
o viver afastado do meu povo,
só porque desfraldei em plena praça
a bandeira do amor? Do que valeu
se hoje, manhã deste milênio novo,
avança, imensa e escura bem na fronte
a marca suja da miséria humana,
gravada em cinza pela indiferença
dos que pretendem donos ser da vida,
avança escura uma legião de crianças
deserdadas do amor e todavia
capazes de sorrir: maior milagre
do século perverso que findou?
De que valeram todas as palavras
que proferi na trova da esperança?
Tão pouco, talvez nada. Não consola
saber que fiz, que fiz a minha parte,
que reparti com tantos o diamante,
que olhei o sol de frente e não fugi
(nem do meu próprio medo).
De consolo não cuido. Pois valeu.
Que tudo vale a pena quando a alma
não é pequena.*
Não sei o tamanho
da minha alma. Só sei que vou varando
o fim do rio, já posso discernir
a margem que me chama. Mas obstinado
confiante sigo no poder distante
da estrela alucinante. Que destino
de estrela é o de brilhar.
E mesmo extinta
brilhante permanece sobre o mundo.

Thiago de Mello

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello



*versos de Fernando Pessoa

Para Leminski, um homem com uma dor é muito mais elegante. E pede: não toquem nessa dor, ela é tudo que me sobra, sofrer vai ser a minha última obra.


Um homem com uma dor


um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisas que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski


sexta-feira, julho 25, 2008

Ainda que esta seja a última dor que ela me causa e estes os últimos versos que eu lhe escrevo. Neruda, em um de seus mais belos cantos de amor e dor.


Puedo escribir los versos más tristes esta noche


Puedo escribir los versos más tristes esta noche,
Yo la quise, y a veces, ella también me quiso.
En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
Ella me quiso, a veces yo también la queria.
Como no haber amado sus grandes ojos fijos.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido
Oir la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.
Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta com haberla perdido.
Como para accercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo
La misma noche qui hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el vientopara tocar su oído.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque em noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta de haberla perdido.
Aúnque ésta sea el último dolor que ela me causa,
y estes los últimos versos que yo le escribo.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Em suas peças, Brecht mostrou aquilo que sempre viu no mercado dos homens. Porque aprendeu que tudo se transforma e é próprio apenas do seu tempo.


Canção do escritor de peças


Eu sou o escritor de peças. Eu mostro
Aquilo que vi. Nos mercados dos homens
Eu vi como o homem é tratado. Isto
Eu mostro, eu, o escritor de peças.

Como entram uns nas casas dos outros, com planos
Ou com cassetetes ou com dinheiro
Como ficam nas ruas e esperam
Como preparam armadilhas uns para os outros
Cheios de esperança
Como marcam encontros
Como enforcam uns aos outros
Como se amam
Como defendem seus despojos
Como comem
Isto eu mostro.

As palavras que gritam uns aos outros, eu as registro.
O que a mãe diz ao filho
O que o empresário ordena ao empregado
O que a mulher responde ao marido
Todas as palavras corteses, as dominadoras
As suplicantes, as equívocas
As mentirosas, as inscientes
As belas, as ferinas
Todas eu registro.

Vejo tempestades de neve que se anunciam
Vejo terremotos que se aproximam
Vejo montanhas no meio do caminho
E vejo rios transbordando.
Mas as tempestades têm dinheiro na carteira
As montanhas desceram de automóveis
E os rios revoltos controlam policiais.
Isto eu revelo.

Para poder mostrar o que vejo
Leio as representações de outros povos e outras épocas.
Algumas peças adaptei, examinando
Com precisão e respectiva técnica, absorvendo
O que me convinha.
Estudei as representações das grandes figuras feudais
Pelos ingleses, ricos indivíduos
Aos quais o mundo servia para desenvolver a grandeza.
Estudei os espanhóis moralizadores
Os indianos, mestres das sensações belas
E os chineses, que retratam as famílias
E os destinos multicores encontrados nas cidades.

E tão rapidamente mudou em meu tempo
A aparência das casas e das cidades, que partir por dois anos
E retornar foi como uma viagem a outra cidade
E as pessoas em grande número mudaram a aparência
Em poucos anos. Eu vi
Trabalhadores adentrarem os portões da fábrica, e os portões eram altos
Mas ao saírem tinham de se curvar.
Então disse a mim mesmo:
Tudo se transforma e é próprio apenas de seu tempo.


Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Dei tudo o que era meu, me gastei no meu ser, nem me sinto mais só. E me sinto maior, igualando-me aos homens iguais, diz em versos Mário de Andrade.


Aspiração


Doçura da pobreza assim...
Perder tudo o que é seu, até o egoísmo de ser seu,
Tão pobre que possa apenas concorrer pra multidão...
Dei tudo o que era meu, me gastei no meu ser,
Fiquei apenas com o que tem de toda gente em mim...
Doçura da pobreza assim...

Nem me sinto mais só, dissolvido nos homens iguais!

Eu caminhei. Ao longo do caminho,
Ficava no chão orvalhado da aurora,
A marca emproada dos meus passos.
Depois o Sol subiu, o calor vibrou no ar
Em partículas de luz doirando e sopro quente.

O chão queimou-se e endureceu.
O sinal dos meus pés é invisível agora...
Mas sobra a Terra, a Terra carinhosamente muda,
E crescendo, penando, finando na Terra,
Os homens sempre iguais...

E me sinto maior, igualando-me aos homens iguais!...

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

quinta-feira, julho 17, 2008

Quando os olhos se me cerram de desejo e os meus braços se estendem para ti, é porque viestes me ver à tardinha.Florbela canta o amor como ninguém.


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...


Florbela Espanca

(1894-1930)


Mais sobre Florbela Espanca em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Para alguns, uma atitude crítica é infrutífera. Para Bertolt Brecht, dêem armas à crítica e estados podem ser destruídos.


On the critical attitude


The critical attitude
Strikes many people as unfruitful
That is because they find the state
Impervious to their criticism
But what in this case is an unfruitful attitude
Is merely a feeble attitude. Give criticism arms
And states can be demolished by it.

Canalising a river
Grafting a fruit tree
Educating a person
Transforming a state
These are instances of fruitful criticism
And at the same time instances of art.


Bertolt Brecht

(1898-1956)


Mais sobre Bertolt Brecht em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

A moça da vida queria a paixão, uma cama de catre e a presença do santo anjo do Senhor, o zeloso guardador. Que era um eunuco, acalmava ela à mãe.


Moça na cama

Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas,
uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir, tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas, os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

Adélia Prado


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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quarta-feira, julho 16, 2008

Mulher, doceira de profissão, poeta de paixão. Cora Coralina em uma abordagem polêmica da vida de uma Mulher.


Mulher da Vida

Mulher da Vida, minha Irmã.

De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida,
minha irmã.

Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por aqueles
que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.

Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.

Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.

Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo
o tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.

A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra”.

As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.

O Justo falou então a palavra de eqüidade:
“Ninguém te condenou, mulher...
nem eu te condeno”.

A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.

Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.

Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.

E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão, a levante,
e diga: minha companheira.

Mulher da Vida, minha irmã.

No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.

E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco em
novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.

Mulher da Vida, minha irmã.

Declarou-lhe Jesus:
“Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes
vos precedem no Reino de Deus”.
Evangelho de São Mateus 21, ver.31.


Cora Coralina
(1889-1985)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Para John Donne, o dia é curto demais quando o amor se perde nas sombras. E o primeiro minuto, após meio-dia, é noite.


A lecture upon the shadow

Stand still, and I will read to thee
A lecture, Love, in Love's philosophy.
These three hours that we have spent,
Walking here, two shadows went
Along with us, which we ourselves produced.
But, now the sun is just above our head,
We do those shadows tread,
And to brave clearness all things are reduced.
So whilst our infant loves did grow,
Disguises did, and shadows, flow
From us and our cares ; but now 'tis not so.

That love hath not attain'd the highest degree,
Which is still diligent lest others see.

Except our loves at this noon stay,
We shall new shadows make the other way.
As the first were made to blind
Others, these which come behind
Will work upon ourselves, and blind our eyes.
If our loves faint, and westerwardly decline,
To me thou, falsely, thine
And I to thee mine actions shall disguise.
The morning shadows wear away,
But these grow longer all the day ;
But O ! love's day is short, if love decay.

Love is a growing, or full constant light,
And his short minute, after noon, is night.

John Donne
(1572-1631)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Donne

segunda-feira, julho 14, 2008

No beco de suas tristezas, mas também dos seus amores, dos seus beijos, dos seus sonhos, Manuel Bandeira canta para dizer Adeus. Para nunca mais.



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http://www.divshare.com/download/4940110-113

Última canção do beco

Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!

Beco de sarças de fogo,
De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!

Beco das minhas tristezas.
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
Pobre, vim morar aqui.

Lapa-Lapa do Desterro-,
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)

Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.

Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!


Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Na dúvida que separa, Leminski soa o silêncio de quem grita do escândalo que cala. Até a luz se acender na casa e não caber mais na sala.


Sintonia para pressa e presságio


Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

O poeta ainda crê que o homem universal de amanhã vença o homem particular. Aquele mesmo que ele ontem foi.


Último credo

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!

Augusto dos Anjos

(1884-1914)


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http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

sábado, julho 12, 2008

Agora que a puta está velha, Drummond só quer re-sentir ao império do mais puro tesão e da mais breve fantasia. Afinal, só mesmo para isso ela serve.


Ó tu, sublime puta encanecida


Ó tu, sublime puta encanecida,
que me negas favores dispensados
em rubros tempos, quando nossa vida
eram vagina e fálus entrançados,

agora que estás velha e teus pecados
no rosto se revelam, de saída,
agora te recolhes aos selados
desertos da virtude carcomida.

E eu queria tão pouco desses peitos,
da garupa e da bunda que sorria
em alva aparição no canto escuro.

Queria teus encantos já desfeitos
re-sentir ao império do mais puro
tesão, e da mais breve fantasia.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Mario Quintana queria trazer uns versos muito lindos, colhidos em seu mais íntimo. Mas por não saber o que dizer, um poema morreu.


Eu queria trazer-te uns versos

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Sua palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para os ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente de puro, ao
vento da Poesia...
como uma pobre lanterna que incendiou!

Mario Quintana

(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Manuel Maria du Bocage sempre surpreendeu com a sua poesia. Mas encantou a todos com o epitáfio para lá quando ele perdesse a humanidade.


Lá quando em mim perder a humanidade


Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
que engrole sob-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:"

Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou a vida folgada, e milagrosa:
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro."

Manuel Maria Barbosa du Bocage,
(1765-1805)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Bocage

quinta-feira, julho 10, 2008

Nos versos de Manoel de Barros, é no calor da boca que o alarme da carne grita. E se abre docemente como um pêssego de Deus.


Pêssego

Proust
Só de ouvir a voz de Albertine entrava em
orgasmo. Se diz que:
O olhar de voyeur tem condições de phalo
(possui o que vê).
Mas é pelo tato
Que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca
Que o alarme da carne grita.
E se abre docemente
Como um pêssego de Deus.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Lá anda a minha Dor às cambalhotas no salão de vermelho atapetado. No poema de Sá-Carneiro, chora um palhaço às piruetas e, ao fim, bandeiras pretas.


Pied-de-nez


Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado -
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rôtas...

O Erro sempre a rir-me em destrambelho -
Falso mistério, mas que não se abrange...
De antigo armário que agoirente range,
Minha alma actual o erverdinhado espelho...

Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido -
E, entretanto, foram de violetas,

Deram-me beijos sem os ter pedido...
Mas como sempre, ao fim - bandeiras pretas.
Tômbolas falsas, carrousel partido.

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Nada, Eu. Do cinema do tempo de Carlito ao telefone que não respondeu, passando pela raposa prateada, um dos belos poemas de Guilherme de Almeida.


Romance do silêncio


O cinema do tempo de Carlito.
Duas estrelas conversando no infinito
A espera do cigarro evaporado.
Um relógio parado.
Livros na estante.
O nariz verde na vidraça vigilante.
Sopros do céu.
Gestos de véu.
O auto que pára numa esquina: asfalto e pneus.
Salto do coração: "Meu Deus! Meu Deus!"
Pés cautelosos pela escada de pelúcia.
A raposa prateada e os seus olhos de astúcia.
A mão que se abandona.
As luvas, o chapéu e a bolsa na poltrona.
Um gosto de bâton.
O movimento de onda do édredon.
O cortinado - Anjo da Guarda - abrindo as asas.
A manhã cor-de-cinza sobre brasas.
A plataforma antes que o trem chegasse.
O caminho da lágrima na face.
Uma carta extraviada.
Um telefone que não respondeu.
Nada.
Eu.

Guilherme de Almeida
(1890-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

quarta-feira, julho 09, 2008

Morte, tão bom deve ser o teu abraço. Fecha-me os olhos que já viram tudo, prende-me as asas que voaram tanto, diz com encanto Florbela Espanca.


À morte


Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto!

Florbela Espanca
(1894-1930)

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É preciso que Amor seja a primeira palavra gravada nesta cela. No muro sujo, amor é uma alegria que ninguém sabe, diz o prisioneiro Thiago de Mello.


Iniciação do prisioneiro


É preciso que Amor seja a primeira
palavra a ser gravada nesta cela.
Para servir-me agora e companheira
seja amanhã de quem precise dela

Não sei o que vai vir, mas se desprende
dessa palavra tanta claridão,
que com poder de povo me defende
e me mantém erguido o coração.

No muro sujo, Amor é uma alegria
que ninguém sabe, livre e luminosa
como as lanças de sol da rebeldia,
que é amor, é brasa e de repente é rosa.

Thiago de Mello

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A todos que sairam às ruas, de corpo-máquina cansado, o canto do Primeiro de Maio de Mayakovsky. O poeta é operário e camponês, ferro e terra.


Meu Maio

A todos que saíram às ruas,
De corpo-máquina cansado,
A todos que imploram feriado
As costas que a terra extenua
Primeiro de Maio!
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário - este é meu maio!
Sou camponês - este é o meu mês!
Sou ferro - eis o maio que quero!
Sou terra - o maio é minha era!

Vladimir Mayakovsky

(1893-1930)

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terça-feira, julho 08, 2008

Já não preciso de rir. E deixo que o inevitável dance, ao meu redor, a dança das espadas de todos os momentos, diz Guimarães Rosa em seus versos.


Consciência cósmica

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força de dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir , se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força de dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir , se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre João Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

Nuno Júdice trabalha o poema sobre uma hipótese: o amor que se despeja no copo da vida. E que deixa, como o vinho turvo, um gosto amargo na boca.


Plano

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

Para Jorge Luis Borges, após um tempo aprendemos a diferença sutil entre segurar uma mão e acorrentar uma alma. E em cada dia aprendemos, aprendemos.


Y uno aprende


Después de un tiempo,
uno aprende la sutil diferencia
entre sostener una mano
y encadenar un alma,
y uno aprende
que el amor no significa acostarse
y una compañía no significa seguridad
y uno empieza a aprender...
Que los besos no son contratos
y los regalos no son promesas
y uno empieza a aceptar sus derrotas
con la cabeza alta y los ojos abiertos
y uno aprende a construir
todos sus caminos en el hoy,
porque el terreno del mañana
es demasiado inseguro para planes...
y los futuros tienen una forma de caerse
en la mitad.
Y después de un tiempo
uno aprende que si es demasiado,
hasta el calorcito del sol quema.
Así que uno planta su propio jardín
y decora su propia alma,
en lugar de esperar a que alguien le traiga flores.
Y uno aprende que realmente puede aguantar,
que uno realmente es fuerte,
que uno realmente vale,
y uno aprende y aprende...
y con cada día uno aprende.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Luis_Borges

domingo, julho 06, 2008

Para Fernando Pessoa, quando se revela, o amor não se sabe revelar. Ah, mas se ela advinhasse, se pudesse ouvir o olhar, pra saber que a estão a amar!


O Amor


O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de *dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Vinicius de Moraes escreveu este maravilhoso poema sobre a triste vida dos nossos operários. E por isso foi perseguido pela Ditadura Militar.


Operário em construção

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:–
Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era Ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer o tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, Cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que a sua marmita
Era o prato do patrão
Que a sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que a sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
-"Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
E o operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! -disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem pelo chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

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Um canto ao amor antigo, tanto mais velho quanto mais amor. Aquele amor que nada exige nem pede, em um belo poema de Carlos Drummond de Andrade.


Ao amor antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Se a vida jamais cansa, para Mario Quintana também nada continua. Tudo vai recomeçar.


Canção do dia de sempre


Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

Mario Quintana

(1906-1994)

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Ferreira Gullar põe em versos toda sua revolta contra a exploração dos camponeses pelos coronéis. Infelizmente, uma história bem antiga no Brasil.


João Boa Morte cabra marcado para morrer


Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro".
Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço".

Ferreira Gullar

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Com a sua famosa e crônica enxaqueca, João Cabral de Melo Neto se rendeu aos encantos da aspirina. Sem nenhum comentário.


Num monumento à aspirina


Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)

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quinta-feira, julho 03, 2008

Em Cora Coralina vivem a cabocla velha, a lavadeira, a cozinheira, a proletária, a roceira e a mulher da vida. Em sua vida, a vida mera das obscuras.


Todas as vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Cora Coralina

(1889-1985)

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Quando o momento da morte vier, trarei nos lábios um sorriso bem satisfeito. Porque já chega de sofrimento, não posso mais, diz Augusto Schmidt.


Não posso mais


Trarei nos lábios, quando o momento
Da morte vier,
Um bom sorriso bem satisfeito –
Porque já chega de sofrimento,
Não posso mais.

Trarei no olhos, quando o momento
Da morte vier,
Outra alegria e outro interesse –
Porque já chega deste momento,
Não posso mais.

Trarei no peito, quando o momento
Da morte vier,
Outra bondade e outro carinho –
Porque já chega de tanto espinho,
Não posso mais.

Que a morte venha consoladora,
Que a espero agora sem vão temor –
Basta de tantos sonhos humanos
Que se transformam em desenganos,
Não posso mais.


Augusto Frederico Schmidt

(1906-1965)

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Neste país onde se morre de coração inacabado deixarei apenas sílabas de cal viva junto à água. É só o que me resta, diz Eugénio de Andrade.


Três ou quatro sílabas

Neste país

onde se morre de coração inacabado

deixarei apenas três ou quatro sílabas

de cal viva junto à água.

É só o que me resta

e o bosque inocente do teu peito

meu tresloucado e doce e frágil

pássaro das areias apagadas.

Que estranho ofício o meu

procurar rente ao chão

uma folha entre a poeira e o sono

húmida ainda do primeiro sol.


Eugénio de Andrade

(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade


quarta-feira, julho 02, 2008

Toda esta noite o rouxinol chorou, gemeu, rezou, gritou perdidamente. Porque ninguém é mais triste do que nós, canta em versos Florbela Espanca.


Alma perdida

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente…
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste… e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!

Florbela Espanca

(1894-1930)

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Campeio amor pra roxeamar paixonada, o roxo por gosto e sina, diz Adélia Prado. Roxo é bonito e eu também gosto muito, desde os Anos Dourados.


Roxo

Roxo aperta.
Roxo é travoso e estreito.
Roxo é a cordis, vexatório,
uma doidura pra amanhecer.
A paixão de Jesus é roxa e branca,
pertinho da alegria.
Roxo é travoso, vai madurecer.
Roxo é bonito e eu gosto.
Gosta dele o amarelo.
O céu roxeia de manhã e de tarde,
uma rosa vermelha envelhecendo.
Cavalgo caçando o roxo,
lembrança triste, bonina.
Campeio amor pra roxeamar paixonada,
o roxo por gosto e sina.

Adélia Prado

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terça-feira, julho 01, 2008

De longe te hei de amar, disse Cecília Meireles em seus versos de amor. Ela sabe que o amor é saudade e o desejo a constância.


De longe te hei de amar


De longe te hei de amar,
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo a constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.

Cecília Meireles

(1901-1964)

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Sou responsável pelas auroras que não se levantam e pela angústia que cresce dia a dia. Sou todos e sou um, somos todos poetas, diz Murilo Mendes.


Somos todos poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.

Murilo Mendes

(1901-1975)

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No princípio do amor, Paulo Mendes Campos sente a morte do amor antes da morte. Mas nos seios dourados de Eliana amanheceu.


No princípio do amor

No princípio do amor, outro amor que nos precede
adivinha no espaço o nosso gesto.
No princípio do amor, o fim do amor.
Folhagens irisadas pela chuva,
varandas traspassadas de luz, poentes de ametista,
palmeiras estruturadas para um tempo além de nosso tempo,
pássaros
fatídicos na tarde assassinada, ofuscação deliciosa
no lago - no princípio do amor
já é amor. E pode ser setembro
com o sol estampado na bruma fulva. Monótona
é a praça com o clarim sangüíneo do meio-dia.

No princípio do amor, o humano se esconde,
bloqueado na terra das canções, astro acuado
em galáxias que se destroçam. E tudo
é nada: nasce a flor e morre o medo
que mascara a nossa face. Navios
pegam fogo defronte da cidade obtusa,
precedida de um tempo que não é o nosso tempo.
No princípio do amor, sem nome ainda, o amor
busca os lábios da magnólia, o coração violáceo
da hortênsia, a virgindade da relva.
É, foi, será princípio de amor. A mulher
abre a janela do parque enevoado, globos irreais,
umidade, doçura,
enquanto o homem - criatura ossuda, estranha -
ri no fundo de torrentes profundas
e deixa de ir subitamente, fitando nada.
Isto se passa em salas nuas,
em submersas paisagens viúvas, argélias
tórridas, fiords friíssimos, desfiladeiros
escalvados, parapeitos de promontórios
suicidas, vilarejos corroídos de ferrugem,
cidades laminadas, trens subterrâneos,
apartamentos de veludo e marfim, províncias
procuradas pela peste, cordilheiras tempestuosas,
planícies mordidas pela monotonia do chumbo, babilônias
em pó, brasílias
de vidro, aviões infelizes em um céu
de rosas arrancadas, submarinos ressentidos
em sua desolação redundante, nas altas torres
do mundo isto se passa; e isto existe
dentro de criaturas inermes, anestesiadas
em anfiteatros cirúrgicos, ancoradas em angras
dementes, pulsando através de alvéolos artificiais,
criaturas agonizando em neblina parda,
parindo mágoa, morte, amor.
E isto se passa como um cavalo em pânico.
E isto se passa até no coração opulento
de mulheres gordas,
de criaturas meio comidas pelo saibro,
no coração de criaturas confrangidas entre o rochedo
e o musgo, no coração de
Heloísa, Diana, Maria,
Pedra, mulher de Pedro,
Consuelo, Marlene, Beatriz.

Olhar - anel primeiro do planeta Saturno.
Olhar, aprender, desviver.
Além da janela só é visível a escuridão.
Olhar - galgo prematuro da alvorada.
No princípio do amor, olhar
a escuridão; depois, os galgos prematuros da alvorada.
No princípio do amor, morte de amor antes da morte.
Amor. A morte. Amar-te a morte.
Sexos que se contemplam perturbados. No princípio do amor
o infinito se encontra.

No princípio do amor a criatura se veste
de cores mais vivas, blusas
preciosas, íntimas peças escarlates,
linhos sutis, sedas nupciais, transparências plásticas,
véus do azul deserto, pistilos de opalina,
corolas de nylon, gineceus rendados,
estames de prata, pecíolos de ouro, flor,
é flor,
é flor que se contempla contemplada.
Isto se passa de janeiro a dezembro
como os navios iluminados.

No princípio do amor
o corpo da mulher é fruto sumarento,
como a polpa do figo, fruto,
fruto em sua nudez sumarenta, essencial, pois
tudo no mundo é uma nudez expectante
como o corpo da mulher no princípio do amor.

Fruto na sombra: mas é noite.
Noite por dentro e por fora do fruto.
Nas laranjas de ouro.
Nos seios crespos de Eliana
Nas vinhas que se embriagam de esperar.
Ramagens despenteadas, recôncavos expectantes,
cinzeladas umbelas, estigmas altivos,
é noite,
é flor, é fruto.

Mas nos seios dourados de Eliana
amanheceu.

Paulo Mendes Campos

(1922-1991)

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