segunda-feira, junho 30, 2008

Um poema é erótico se um poeta como Manuel Bandeira o cria com todo o seu desejo. Para ele, não importa se os tempos e até o próprio amor vão mudar.


Poemeto Erótico

Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...

Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...

Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...

Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...

É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...

Volúpia de água e da chama...

A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manuel Bandeira

(1886-1968)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira



Para Mario Quintana, a vida é bela, a vida é louca. Então, por que chorar?


A canção da vida


A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Nos versos de João Cabral de Melo, a vida vai-se indo aos pouquinhos. E o homem muda de cama, vai para o caixão.


Como a morte se infiltra

Certo dia, não se levanta
porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz por que:
é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,
E nem pode apoiar-se nela.

Dia a dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.

Dia a dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,

Outra semana sempre adiada,
que ele não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.

Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.

Quem deixou-o, a respiração ?
Muda de cama. Eis seu caixão.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

domingo, junho 29, 2008

Neste que é um dos seus melhores poemas, Álvaro de Campos é para muitos a verdadeira pessoa de Fernando Pessoa.


Passagem das Horas

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente
Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
Tempestades em torno ao Guardaful...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que se esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...
Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
(No mesmo abraço comovido)
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.

Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
Os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizésseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
Sim, e o que tenho eu sido, ó meu subjetivo universo,
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...
Meu coração tribunal, meu coração mercado,
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
Estalagem, calabouço número qualquer cousa
(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
Meu coração postigo,
Meu coração encomenda,
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice,
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Eu cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coiffées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima.)

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!

Obter tudo por suficiência divina —
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As cousas belas da vida —
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar já para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que a dor real das crianças em quem batem
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
Às leis irrepreensíveis da Vida,
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,
E que acho que não faz mal não ligar importância à pátria
Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua,
Eu, o que eles não sabem de si próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A cicatriz do sargento mal encarado,
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O sacana do José que prometeu vir e não veio
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de tudo isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O baú das iniciais gastas,
A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A Brígida prima da minha tia,
O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!
Caem as folhas secas no chão irregularmente,
Mas o fato é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
Não me subordino senão por atavismo,
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

Das terrasses de todos os cafés de todas as cidades
Acessíveis à imaginação
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
Vou ao lado dela sem ela saber.
No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,
Não há modo de eu não estar em toda a parte.
O meu privilégio é tudo
(Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

Assisto a tudo e definitivamente.
Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta
Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre,
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
E todos os dias têm essa janela por diante,
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido
Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho!...
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho ... Helahoho ...

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
Ho ----

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor

Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,
Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,
Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,
Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente
Rola ...

Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,
Para inencontrável, ali sem restrições nenhumas,
A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...

Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...

Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
Hup-la hup-la hup-la hup-la ...

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
Clarim claro da manhã ao fundo
Do semicírculo frio do horizonte,
Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...

Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
Tosse seca, nova do que sai de casa,
Leve arrepio matutino na alegria de viver,
Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
Inevitavelmente vital,
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
Abrem aqui e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma colina que oscila,
e caminha tudo

Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,
Do rodopio parado da minha retentiva seca,
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas "perdão" rua
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua

Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
Por todos os precipícios abaixo
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objetos projéteis!
À moi, todos os objetos direções!
À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
Velocidade entra por todas as idéias dentro,
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,
Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.
Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir.
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Drummond aprendeu que o amor no claro é sempre triste. Desobediente, ele disse tudo a alguém, alguém que agora sabe e sempre saberá.


Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.


Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

O poeta pediu perdão à mulher amada porque tinha um sério compromisso com a sua luta. E conhecendo bem o homem Vinicius de Moraes, o que ele faria?


Mensagem à poesia


Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.

Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite
ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte
do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens: contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema: contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio, rondam os lares, e é
preciso reconquistar a vida
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos
os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso
Ponderem-lhe com cuidado - não a magoem... que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num
cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há uma poça de sangue numa
praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento aos
Homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh, procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha
numa estrada
Junto a um cadáver de mãe; digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber; contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua incomensurável
Solidão: peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.

Mas não a traí.
Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência
É também um sortilégio
Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz: Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-la mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abatem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A que foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A que foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem uma pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou eu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir,
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinícius_de_Moraes

sábado, junho 28, 2008

Um galo sozinho não tece uma manhã. Nos versos cheios de sabedoria de João Cabral de Melo, ele precisará sempre de outros galos.



Tecendo a manhã


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Drida rabiscava a cada dia o seu diário, contando toda as suas perversidades. Moral da história para Hilda Hilst: foge da maga.


Drida, a maga perversa e fria

Pairava sobre as casas
Defecava ratas
Andava pelas vias
Espalhando baratas
Assim era Drida
A maga perversa e fria.
Rabiscava a cada dia o seu diário.
Eis que na primeira página se lia:
Enforquei com a minha trança
O velho Jeremias.
E enforcado e de mastruço duro
Fiz com que a velha Inácia
Sentasse o cuzaço ralo
No dele dito cujo.
Sabem por quê?
Comeram-me a coruja.
Incendiei o buraco da Neguinha.
Uma criola estúpida
Que limpava remelas
De porcas criancinhas.
Perguntaram-me por que
Incendiei-lhe a rodela?
Pois um buraco fundo
De régia função
Mas que só tem valia
Se usado na contramão
Era por neguinha ignorado.
maldita ortodoxia!
Comi o cachorro do rei
Era um tipinho gay
Que ladrava fino
Mas enrabava o pato do vizinho.
Depenei o pato.
Sabem por quê?
Cagou no meu cercado.
E agora vou encher de traques
O caminho dos magos.
Com minha espada de palha e bosta seca
Me voy a Santiago. Moral da história:
Se encontrares uma maga (antes
Que ela o faça), enraba-a.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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O beijo de Olavo Bilac, o Príncipe dos Poetas, tinha que ser assim. O melhor da sua vida ou talvez o pior, glória e tormento.


Um beijo

Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior...Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! e anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto....

Olavo Bilac

(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo Bilac



sexta-feira, junho 27, 2008

O poema é obsceno, afirma Ferreira Gullar. Obsceno como o salário de um trabalhador aposentado.


Poema obsceno


Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Maninho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
- e espreitam.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Para Afonso Romano de Sant'Ana, só os mortos sabem as respostas que os vivos não sabem. Nada mudou em essência.


Carta aos mortos

Amigos, nada mudou
em essência.

Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há recordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração , insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.

Afonso Romano de Sant'ana

Mais informações sobre Afonso Romano de Sant'ana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'ana

Cruz e Sousa teve o corpo corroído pela tuberculose e a alma tomada pela loucura. E como o acrobata, acabou por mostrar toda a sua dor.


Acrobata da dor


Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.

Cruz e Sousa
(1861-1898)

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quinta-feira, junho 26, 2008

Por um lindésimo de segundo, tudo psiu em volta de Paulo Leminski.


Por um lindésimo de segundo


tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu
tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas


Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

A quatro mãos escrevemos o roteiro para o palco do meu tempo: o meu destino e eu. Porque nem sempre nos levamos a sério, confessa Lya Luft.


Não sou areia

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério.

A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Para Adélia Prado, era impossível no mundo estarem juntos. Afinal, o mesmo véu que protege a vida também os separa.


O intenso brilho


É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quarta-feira, junho 25, 2008

Me dê coragem, meu Deus, me dê a coragem de me enfrentar. E perdoe o meu pecado de pensar, implora Clarice Lispector.


Meu Deus, me dê a coragem


Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
meu pecado de pensar.

Clarice Lispector
(1920-1977)

Mais sobre Clarice Lispector em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector

Quando a poesia foi posta em oposição à utopia, a culpa não foi dos versos de Murilo Mendes. Foi do poeta, apenas um homem.


O utopista


Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
Que só de pão vive o homem
Que não há um outro mundo.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Augusto dos Anjos bebia muito para ver se achava a Glória que ninguém achava. Pobre coitado.


O Ébrio


Bebi! Mas sei por que bebi!... Buscava
Em verdes nuanças de miragens, ver
Se nesta ânsia suprema de beber,
Achava a Glória que ninguém achava!

E todo o dia então eu me embriagava
- Novo Sileno, - em busca de ascender
A essa Babel fictícia do Prazer
Que procuravam e que eu procurava.

Trás de mim, na atra estrada que trilhei,
Quantos também, quantos também deixei,
Mas eu não contarei nunca a ninguém.

A ninguém nunca eu contarei a história
Dos que, como eu, foram buscar a Glória
E que, como eu, irão morrer também.


Augusto dos Anjos

(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

terça-feira, junho 24, 2008

Da vez primeira que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha. E hoje, dos meus cadáveres, eu sou o que não tem mais nada, diz Quintana.


Da vez primeira que me assassinaram

Da vez primeira em que me assassinaram

Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...

Depois, de cada vez que me mataram

Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou

O mais desnudo, o que não tem mais nada...

Arde um toco de vela, amarelada...

Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!

Ah! Desta mão, avaramente adunca,

Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!

Que a luz, trêmula e triste como um ai,

A luz do morto não se apaga nunca!

Mario Quintana

(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Quando o enterro passou, os homens no café saudaram o morto distraídos. Nos versos de Manuel Bandeira, pelo menos um deles sabia que a vida é traição.


Momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.


Manuel Bandeira

(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Escondo o medo e avanço, devagar, ainda não é o fim. Mas que avançar no chão ferido seja também saber o que fazer de mim, confessa Thiago de Mello.


Ainda não é o fim

Escondo o medo e avanço. Devagar.

Ainda não é o fim. É bom andar,

mesmo de pernas bambas. Entre os álamos,

no vento anoitecido, ouço de novo

(com os mesmos ouvidos que escutaram

“Mata aqui mesmo?”) um riso de menina.

Estou quase canção, não vou morrer

agora, de mim mesmo, mal livrado

de recente e total morte de fogo.

A vida me reclama: a moça nua

me chama da janela, e nunca mais

me lembrarei sequer dos olhos dela.

Posso seguir andando como um homem

entre rosas e pombos e cabelos

que em prazo certo me devolverão

ao sonho que me queima o coração.

Muito perdi, mas amo o que sobrou.

Alguma dor, pungindo cristalina,

alguma estrela, um rosto de campina.

Com o que sobrou, avanço, devagar.

Se avançar é saber, lâmina ardendo

na flor do cerebelo, porque foi

que a alegria, a alegria começando

a se abrir, de repente teve fim.

Mas que avançar no chão ferido seja

também saber o que fazer de mim.


Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

domingo, junho 22, 2008

Quanto tornar a vir a Primavera talvez já não me encontre no mundo, lamenta em versos Alberto Caeiro. Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.


Quando tornar a vir a Primavera


Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

A formação de uma quadrilha do amor, segundo Carlos Drummond de Andrade. Todos se acabaram, coitado do infeliz J.Pinto Fernandes.


Quadrilha


João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade
(1901-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Diante da beleza da mulher amada, Vinicius de Moraes sofre nas primaveras loucas e noturnas. Nu e só, ele chora a vida e a morte no momento breve.


Soneto do breve momento


Plumas de ninhos em teus seios; urnas
De rubras flores em teu ventre; flores
Por todo corpo teu, terso das dores
De primaveras loucas e noturnas.

Pântanos vegetais em tuas pernas
A fremir de serpentes e de sáurios
Itinerantes pelos multivários
Rios de águas estáticas e eternas.

Feras bramindo nas estepes frias
De tuas brancas nádegas vazias
Como um deserto transmudado em neve.

E em meio a essa inumana fauna e flora
Eu, nu e só, a ouvir o Homem que chora
A vida e a morte no momento breve.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, junho 21, 2008

Saímos de braço dado, a noite escura e eu. Vou levando a dor que os homens me deram e a canção que Deus me deu, assovia Cecilia Meireles.


Assovio


Ninguém abra a sua porta
para ver o que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.

Cecília Meireles

(1901-1964)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Mãos, côncavas de ter, longas de desejo, frescas de abandono, consumidas de espanto, inquietas de tocar e não prender. Tuas mãos, querida, por Sophia.


Mãos

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Havia um mar e ali brotava uma ilha povoada de lobos e pensamentos. Lá, Lya Luft foi menina e foi rainha, tudo real e tudo ilusão.


Mar de menina


Havia um mar,
e ali brotava uma ilha
povoada de lobos e de pensamentos.
Havia um fundo escuro e belo
onde os naúfragos dançavam
como sereias.
Havia ansiedade e abraço.
Havia âncora e vaguidão.

Brinquei com peixes e anjos,
fui menina e fui rainha,
acompanhada e largada,
sempre a meia altura
do chão.

A vida um barco, remos ou ventos,
tudo real e tudo
ilusão.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

sexta-feira, junho 20, 2008

Em 1952, a mexer no armário de roupas, num apartamento da rua Tenente Possolo, Ferreira Gullar vive a história do homem. E se pergunta, quem sou eu?


Quem sou eu?


Quem sou eu dentro da minha boca?
Quem sou eu nos meus dentes
detrás dos meus dentes
na língua que se move
presa no fundo da garganta? que nome tenho
na escuridão do esôfago?
no estômago
na química dos intestinos?

Quem em mim secreta
saliva? excreta
fezes?
quem embranquece em meus cabelos
e vira pus nas gengivas?
Quem sou eu
ao lado da Biblioteca Nacional
tão frágil, meu deus, na noite
sob as estrelas?
e no entanto impávido!
(a mexer no armário de roupas
num apartamento da rua Tenente Possolo
em 1952
vivo a história do homem).

J’irai sous la aterre
et toi, tu marcheras dans le soleil.


Tudo o que sobrará de mim
é papel impresso.

Com um pouco de manhã
engastado nas sílabas, é certo, mas
que é isso
em comparação com meu corpo real? meu
corpo
onde a alegria é possível
se mãos lhe tocam os pêlos
se uma boca o beija
o saliva
o chupa com dois olhos brilhantes?

E sou então
praia vento floresta
resposta sem pergunta
o eixo do corpo
na saliva dourada
giro
e giramos
com o verão que se estende por todo o hemisfério sul

Como dizer então: pouco
me importa a morte?
E sobretudo se existem as histórias em quadrinhos
e os programas de televisão
que continuarão a passar noite após noite
no recesso dos lares
numa terça-feira que antecede à quarta
numa quinta-feira que antecede à sexta
ou num sábado
ou num domingo.
Como dizer
pouco me importa?

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

António Gedeão nos ensina porque compreende-se tanta coisa nessa vida louca. Mas, lá no ano três mil e tal, para que serviu afinal o nosso sofrimento?


Poema do alegre desespero

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

António Gedeão

(1906-1997)

http://en.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gede%C3%A3o

Adalgisa Nery já o amava pelo ar triste e decadente dos vencidos. E por toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia da verdade da vida.


Escultura


Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...

Adalgisa Nery
(1905-1980)

Mais sobre Adalgisa Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

quarta-feira, junho 18, 2008

Manoel de Barros tem um aferidor de Encantamentos que só dava boas notas. Mas deu Desencanto a um homem sentado nas pedras de suas próprias ruínas.

O aferidor

Tenho um aferidor de Encantamentos.

A uma açucena encostada no rosto de uma criança

O meu Aferidor deu nota dez.

A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura

O Aferidor deu nota vinte.

Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada

Sentado nas pedras de suas próprias ruínas

O meu Aferidor deu DESENCANTO.

(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)

Manoel de Barros

Mais sobre Manoel de Barros em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Pudesse eu, disse com muito amor Sofia de Melo Breyner. E mais não foi preciso dizer.


Pudesse eu

Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!

Sophia de Mello Breyner

(1919-2004)

Mais sobre Sofia de Melo Breyner em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Augusto dos Anjos diz que quem passa pela Dor há de beber a taça da cicuta até o fim. E que a Desgraça derrama em cada boca uma gota do fatal veneno.


A dor

Chama-se a Dor, e quando passa, enluta

E todo mundo que por ela passa

Há de beber a taça da cicuta

E há de beber até o fim da taça!

Há de beber, enxuto o olhar, enxuta

A face, e o travo há de sentir, e a ameaça

Amarga dessa desgraçada fruta

Que é a fruta amargosa da Desgraça!

E quando o mundo todo paralisa

E quando a multidão toda agoniza,

Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno

De agonizante multidão rodeada,

Derrama em cada boca envenenada

Mais uma gota do fatal veneno!

Augusto dos Anjos

(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

terça-feira, junho 17, 2008

No auge do nazismo, Bertolt Brecht alerta para o perigo que a propaganda representa para os povos. Infelizmente, uma lição não aprendida até hoje.


Necessidade da propaganda

1

É possível que em nosso país nem tudo ande como deveria andar.

Mas ninguém pode negar que a propaganda é boa.

Mesmo os famintos devem admitir

Que o Ministro da Alimentação fala bem.

2

Quando o regime liquidou mil homens

Num único dia, sem investigação nem processo

O Ministro da Propaganda louvou a paciência infinita do Führer

Que havia esperado tanto para ter a matança

E havia acumulado os patifes de bens e distinções

Fazendo-o num discurso tão magistral, que

Naquele dia não só os parentes das vítimas

Mas também os próprios algozes choraram.

3

E quando em um outro dia o maior dirigível do Reich

Se desfez em chamas, porque o haviam enchido de gás inflamável

Poupando o gás não-inflamável para fins de guerra

O Ministro da Aeronáutica prometeu diante dos caixões dos mortos

Que não se deixaria desencorajar, o que ocasionou

Uma grande ovação. Dizem que houve aplausos

Até mesmo de dentro dos caixões.

4

E como é exemplar a propaganda

Do lixo e do livro do Führer!

Todo mundo é levado a recolher o livro do Führer

Onde quer que esteja jogado.

Para propagar o hábito de juntar trapos*, o poderoso Gõring

Declarou-se o maior “juntador de crápulas” de todos os tempos

E para acomodar os crápulas* fez construir

No centro da capital do Reich

Um palácio ele mesmo do tamanho de uma cidade.

5

Um bom propagandista

Transforma um monte de esterco em local de veraneio.

Quando não há manteiga, ele demonstra

Como um talhe esguio faz um homem esbelto.

Milhares de pessoas que o ouvem discorrer sobre as auto-estradas

Alegram-se como se tivessem carros.

Nos túmulos dos que morreram de fome ou em combate

Ele planta louros. Mas já bem antes disso

Falava de paz enquanto os canhões passavam.

6

Somente através de propaganda perfeita

Pôde-se convencer milhões de pessoas

Que o crescimento do Exército constitui obra de paz

Que cada novo tanque é uma pomba da paz

E cada novo regimento uma prova de

Amor à paz.

7

Mesmo assim: bons discursos podem conseguir muito

Mas não conseguem tudo. Muitas pessoas

Já se ouve dizerem: pena

Que a palavra “carne” apenas não satisfaça, e

Pena que a palavra “roupa” aqueça tão pouco.

Quando o Ministro do Planejamento faz um discurso de louvor à nova impostura

Não pode chover, pois seus ouvintes

Não têm com que se proteger.

8

Ainda algo mais desperta dúvidas

Quanto à finalidade da propaganda: quanto mais propaganda há em nosso país

Tanto menos há em outros paises.


Bertolt Brecht

(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

A descoberta de quem não se conhecia e se achou, por amor. Eu, Florbela Espanca, mulher e poeta.

Eu

Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... e não me via!

Andava a procurar-me -Pobre louca!-
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!

Florbela Espanca

(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Um bom poema tem uma vida muito especial desde o nascimento até a eternidade. Como dizia Paulo Leminski, eu e você, caminhando junto.


Um bom poema

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Paulo Leminski

(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski






sábado, junho 14, 2008

No belo poema de Drummond, até Deus se emociona quando a música popular entra no paraíso. Com Vinicius, Menestrel da Gávea e dos amores inumeráveis.


A música popular entra no paraíso

Deus - Quem é este baixinho que vem aí, ao som do violão, de copo cheio na mão?
São Pedro - Senhor, pelos indícios, só pode ser o vosso servo Vinicius, Menestrel da Gávea e dos amores inumeráveis.
Deus - Será que ele vem fazer alaúza no céu, perturbando o coro dos meus anjos-cantores, diplomados pela Schola Cantorum do mestre São Jorge, o Grande?
São Pedro (hesitante) - Bem... Eu acho, com a devida licença, que ele traz um som novo, mais terrestre, menos beatífico, é certo, mas com uma suavidade brasileira inspirada nos seresteiros seus avós, os quais já têm assentos cativos junto ao vosso trono, Senhor. Coisa mui digna de vossa especial atenção.
Deus - Hum, hum...
São Pedro - Posso continuar, Senhor?
Deus - Vá dizendo, Pedro. É sabido que você tem um fraco por essa gente que canta de noite, esteja ou não pescando, principalmente não estando.
São Pedro - Pois eu digo, Senhor, que esse baixinho aí, todo simpatia e delicadeza, é um de vossos bons servidores na Terra, pois combateu a maldade pela ternura, a injustiça pela fraternidade, e compôs os cânticos profanos que, elevando o coração dos ouvintes, fazem o mesmo que os cânticos sagrados.
Deus (surpreso) - O mesmo?
São Pedro - O mesmo, Senhor, porque vós permitistes ao homem trilhar a vida direta ou a vida indireta, conforme o gosto dele. Este poetinha escolheu a segunda, por inclinação natural, e manifestou à sua maneira própria o amor à humanidade, distribuindo-o de preferência, na medida do possível, a umas quantas eleitas.
Deus - Não terá sido antes dispersão do que concentração?
São Pedro - As duas coisas, mas unidas tão sutilmente! E essa unidade paradoxal, mas espontânea, produziu os hinos do amor carnal, nos quais foi glorificado o corpo que concedestes às criaturas, e por essa forma glorificou-se a vossa divina Criação.
Deus - Menos mal, se assim foi. Então Psse... como lhe chamas?
São Pedro - Vinicius, não o patrício romano, que o amor conduziu do paganismo à fé cristã, mas o de Melo Moraes, filho de pais que curtiam o Quo Vadis. Este nasceu diretamente para o amor, e não precisou meter-se nas embrulhadas do paganismo de Nero para achar o rumo de sua alma. Ele já estava traçado pelas estrelas de outubro, vossas mensageiras. Vinicius nasceu com a célula poética, e esta desabrochou em cânticos variados, na voz de seus lábios e na dos instrumentos. Com estes cânticos ele encantou o seu povo. E era um povo necessitado de canto, um canto tão necessitado mesmo!
Deus - Ele deu alegria ao meu povo?
São Pedro (exultante) - Se deu, Senhor! E para isso não precisava sempre compor canções alegres. Ia até o fundo das canções tristes, mas dava-lhes uma tal doçura e meiguice que as pessoas, ouvindo-as, não sabiam se choravam ou se viam consoladas velhas mágoas. Era um coração se desfazendo em música, Senhor. Deu tanta alegria ao povo, que até a última hora de sua vida (esta não chegou a ser longa, mas se alongou em canção) trabalhou com seu fiel parceiro Toquinho para levar às crianças um tipo musical de felicidade. Morreu pois a vosso serviço, Senhor.
Deus (disfarçando a emoção) - Mande entrar, mande entrar logo esse rapaz. Vinicius entra rodeado de anjos, crianças, virgens e matronas que entoam mansamente:
Se todos fossem iguais a você,
que maravilha viver!
Uma canção pelo ar,
uma mulher a cantar,
uma cidade a cantar,
a sorrir, a cantar, a pedir
a beleza de amar,
como o sol, como a flor, como a luz,
amar sem mentir nem sofrer.
Existiria a verdade,
verdade que ninguém vê,
se todos fossem no mundo
iguais a você!
De vários pontos, vêm-se aproximando Sinhô, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Ciro Monteiro, Noel Rosa, Dolores Duran, Orfeu, Eurídice, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Portinari, Murilo Mendes, Mayza, Lúcio Rangel, Tia Ciata, Santa Cecília, Antônio Maria, Bach, Ernesto Nazaré, Jaime Ovalle, Chiquinha Gonzaga e outros e outros e outros que não caberiam neste relato mas cabem na imensidão do céu e som, e unem-se ao coral:
Teu caminho é de paz e de amor.
Abre os teus braços e canta
a última esperança,
a esperança divina
de amar em paz!
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Em seu lamento do amor perdido, Vinicius de Moraes pergunta: onde estão os teus olhos, onde estão? E pede: vem, eu quero os teus olhos, meu amor!


Sonata do amor perdido

Lamento nº 1

Onde estão os teus olhos – onde estão? – Oh – milagre de amor que escorres dos meus olhos!
Na água iluminada dos rios da lua eu os vi descendo e passando e fugindo
Iam como as estrelas da manhã. Vem, eu quero os teus olhos, meu amor!
A vida... sombras que vão e sombras que vêm vindo
O tempo... sombras de perto e sombras na distância – vem, o tempo quer a vida!
Onde ocultar minha dor se os teus olhos estão dormindo?

Onde está tua face? Eu a senti pousada sobre a aurora
Teu brando cortinado ao vento leve era como asas fremindo
Teu sopro tênue era como um pedido de silêncio – oh, a tua face iluminada!
Em mim, mãos se amargurando, olhos no céu olhando, ouvidos no ar ouvindo
Na minha face o orvalho da madrugada atroz, na minha boca o orvalho do teu nome!
Vem... Os velhos lírios estão fanando, os lírios novos estão florindo...

Intermédio

Sob o céu de maio as flores têm sede da luz das estrelas
Os róseos gineceus se abrem na sombra para a fecundação maravilhosa...
Lua, ó branca Safo, estanca o perfume dos corpos desfolhados na alvorada
Para que surja a ausente e sinta a música escorrendo do ar!
Vento, ó branco eunuco, traz o pólen sagrado do amor das virgens
Para que acorde a adormecida e ouça a minha voz...

Lamento nº 2

Teu corpo sobre a úmida relva de esmeralda, junto às acácias amarelas
Estavas triste e ausente – mas dos teus seios ia o sol se levantando
Oh, os teus seios desabrochados e palpitantes como pássaros amorosos
E a tua garganta agoniada e teu olhar nas lágrimas boiando!
Oh, a pureza que se abraçou às tuas formas como um anjo
E sobre os teus lábios e sobre os teus olhos está cantando!
Tu não virás jamais! Teus braços como asas frágeis roçaram o espaço sossegado
Na poeira de ouro teus dedos se agitam, fremindo, correndo, dançando...
Vais... teus cabelos desvencilhados rolam em onda sobre a tua nudez perfeita
E toda te incendeias no facho da alma que está queimando...
Oh, beijemos a terra e sigamos a estrela que vai do fogo nascer no céu parado
É a Música, é a música que vibra e está chamando!

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sexta-feira, junho 13, 2008

Mario Quintana criou um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema. Triste, solitário, único, ferido de mortal beleza.


O poema


Um poema como um gole dágua bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Para João Cabral de Melo, todas as cidades do mundo lembravam a sua Recife. E sempre que podia, ele derramava em versos todo o amor pela sua terra.


Volta a Pernambuco

Contemplando a maré baixa
nos mangues do Tijipió
lembro a baía de Dublin
que daqui já me lembrou.

Em meio à bacia negra
desta maré quando em cio,
eis a Albufera, Valência,
onde o Recife me surgiu.

As janelas do cais da Aurora,
olhos compridos, vadios,
incansáveis, como em Chelsea,
vêem rio substituir rio,

e essas várzeas de Tiuma
com seus estendais de cana
vêm devolver-me os trigais
de Guadalajara, Espanha.

Mas as lajes da cidade
não me devolvem só uma,
nem foi uma só cidade
que me lembrou destas ruas.

As cidades se parecem
nas pedras do calçamento
das ruas artérias regando
faces de vário cimento,

por onde iguais procissões
do trabalho, sem andor,
vão levar o seu produto
aos mercados do suor.

Todas lembravam o Recife,
este em todas se situa,
em todas em que é um crime
para o povo estar na rua,

em todas em que esse crime,
traço comum que surpreendo,
pôs nódoas de vida humana
nas pedras do pavimento.

João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Nos versos de Manuel Bandeira, a fina, a doce ferida deixou quebranto amoroso na cicatriz dolorida. A dor do gozo arderá em seu peito por toda a vida.


A fina, a doce ferida


A fina, a doce ferida
Que foi a dor do meu gozo
Deixou quebranto amoroso
Na cicatriz dolorida.

Por que ardor pecaminoso
Ateou a esta alma perdida
A fina, a doce ferida
Que foi a dor do meu gozo.

Como uma adaga partida
Punge o golpe voluptuoso...
Que no peito sem repouso
Me arderá por toda a vida
A fina, a doce ferida...


Manuel Bandeira

(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Acontece que me canso de ser homem. Nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera, mas nunca o teu riso, porque então morreria, diz Neruda com muito amor.



Walking around

Sucede que me canso de ser hombre.
Sucede que entro en las sastrerías y en los cines
marchito, impenetrable, como un cisne de fieltro
Navegando en un agua de origen y ceniza.

El olor de las peluquerías me hace llorar a gritos.
Sólo quiero un descanso de piedras o de lana,
sólo quiero no ver establecimientos ni jardines,
ni mercaderías, ni anteojos, ni ascensores.

Sucede que me canso de mis pies y mis uñas
y mi pelo y mi sombra.
Sucede que me canso de ser hombre.

Sin embargo sería delicioso
asustar a un notario con un lirio cortado
o dar muerte a una monja con un golpe de oreja.
Sería bello
ir por las calles con un cuchillo verde
y dando gritos hasta morir de frío

No quiero seguir siendo raíz en las tinieblas,
vacilante, extendido, tiritando de sueño,
hacia abajo, en las tapias mojadas de la tierra,
absorbiendo y pensando, comiendo cada día.

No quiero para mí tantas desgracias.
No quiero continuar de raíz y de tumba,
de subterráneo solo, de bodega con muertos
ateridos, muriéndome de pena.

Por eso el día lunes arde como el petróleo
cuando me ve llegar con mi cara de cárcel,
y aúlla en su transcurso como una rueda herida,
y da pasos de sangre caliente hacia la noche.

Y me empuja a ciertos rincones, a ciertas casas húmedas,
a hospitales donde los huesos salen por la ventana,
a ciertas zapaterías con olor a vinagre,
a calles espantosas como grietas.

Hay pájaros de color de azufre y horribles intestinos
colgando de las puertas de las casas que odio,
hay dentaduras olvidadas en una cafetera,
hay espejos
que debieran haber llorado de vergüenza y espanto,
hay paraguas en todas partes, y venenos, y ombligos.
Yo paseo con calma, con ojos, con zapatos,
con furia, con olvido,
paso, cruzo oficinas y tiendas de ortopedia,
y patios donde hay ropas colgadas de un alambre:
calzoncillos, toallas y camisas que lloran
lentas lágrimas sucias.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda