quinta-feira, maio 29, 2008

À noite que vem sempre molhada, Eugénio de Andrade pede: sê alegria, senhora da tristeza. Vem de outra maneira ou vai-te embora, e deixa romper o dia.


Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!

Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!
Porque não vens de olhos enxutos
e não despes as mãos
de mágoas e de lutos!

Poque hás-de vir semimorta,
com ar macerado e de bruxedo,
e não despes os ritos, o cansaço,
e as lágrimas e os mitos e o medo!

Porque não vens natural
Como um corpo sadio que se entrega,
e não destranças os cabelos,
e não nimbas de luz a tua treva!

Porque hás-de vir com a cor da morte
- se a morte já temos nós!
Porque adormeces os gestos,
porque entristeces os versos,
e nos quebras os membros e a voz!

Porque é que vens adorada
por uma longa procissão de velas,
se eu estou à tua espera em cada estrada,
nu, inteiramente nu,
sem mistérios, sem luas e sem estrelas!

Ó noite eterna e velada,
senhora da tristeza, sê alegria!
Vem de outra maneira ou vai-te embora,
e deixa romper o dia!

Eugénio de Andrade

(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade


.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito obrigada por todos esses lindos poemas, inclusive este do Miguel Torga.
Marília