sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Nos versos lascivos de Drummond, o amor não é completo se não sabe coisas que só o amor pode inventar.


A outra porta do prazer

A outra porta do prazer,
porta a que se bate suavemente,
seu convite é um prazer ferido a fogo
e, com isso, muito mais prazer.

Amor não é completo se não sabe
coisas que só o amor pode inventar,
Procura o estreito átrio do cubículo
aonde não chega a luz, e chega o ardor
de insofrida, mordente
fome de conhecimento pelo gozo.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Entre o que desejava ser e o que os outros lhe fizeram, Álvaro de Campos conheceu-se. Não existia.


Começo a conhecer-me. Não existo.


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

O Incriado de Deus não pode fugir à carne e à memória porque nada pode permanecer para a vida. Só ele, parado dentro do tempo, passando, passando...


O incriado

Distantes estão os caminhos que vão para o tempo - outro luar eu vi passar na altura
Nas plagas verdes as mesmas lamentações escuto como vindas da eterna espera
O vento ríspido agita sombras de araucárias em corpos nus unidos se amando
E no meu ser todas as agitações se anulam como vozes dos campos moribundos.

Oh, de que serve ao amante o amor que não germinará na terra infecunda
De que serve ao poeta desabrochar sobre o pântano e cantar prisioneiro?
Não há a fazer pois que estão brotando crianças trágicas como cactos
Da semente má que a carne enlouquecida deixou nas matas silenciosas.

Nem plácidas visões restam aos olhos - só o passado surge se a dor surge
E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para Ter vida
Todas as meias-noites soam e o leito está deserto do corpo estendido
Nas ruas noturnas a alma passeia, desolada e só, em busca de Deus.

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo
No entanto, como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema franqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a primavera é eterna.

Na memória cruel vinte anos seguem a vinte anos na única paisagem humana
Longe do homem os desertos continuam impassíveis diante da morte
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra
E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente calmas.

Ai, muito andei e em vão... rios enganosos conduziram meu corpo a todas as idades
Na terra primeira ninguém conhecia o Senhor das bem-aventuranças...
Quando meu corpo precisou repousar, eu repousei,
quando minha boca ficou sedenta, eu bebi
Quando meu ser pediu a carne, eu dei-lhe a carne mas eu me senti mendigo.

Longe está o espaço onde existem os grandes vôos e onde a música vibra solta
A cidade deserta é o espaço onde o poeta sonha os grandes vôos solitários
Mas quando o desespero vem e o poeta se sente morto para a noite
As entranhas das mulheres afogam o poeta e o entregam dormindo à madrugada.

Terrível é a dor que lança o poeta prisioneiro à suprema miséria
Terrível é o sono atormentado do homem que suou sacrilegamente a carne
Mas boa é a companhia errante que traz o esquecimento de um minuto
Boa é a esquecida que dá o lábio morto ao beijo desesperado.

Onde os cantos longínquos do oceano?...
Ssobre a espessura verde eu me debruço e busco o infinito
Ao léu das ondas há cabeleiras abertas como flores -
São jovens que o terno amor surpreendeu
Nos bosques procuro a seiva úmida mas os troncos estão morrendo
No chão vejo magros corpos enlaçados de onde a poesia fugiu como o perfume da flor morta.

Muito forte sou para odiar nada senão a vida
Muito fraco sou para amar nada mais do que a vida
A gratuidade está no meu coração e a nostalgia dos dias me aniquila
Porque eu nada serei como ódio e como amor se eu nada conto e nada valho.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança
Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere e explode sobre a imagem criada
Eu sou o demônio do bem e o destinado do mal mas eu nada sou.

De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto
De nada valem ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos sentimentos maus
No teu puríssimo regaço eu nunca estarei, Senhora...

Choram as árvores na espantosa noite, curvadas sobre mim, me olhando...
Eu caminhando... sobre meu corpo as árvores passando
Quem morreu se eu estou vivo, por que choram as árvores?
Dentro de mim tudo está imóvel, mas eu estou vivo, eu seu que estou vivo porque sofro.

Se alguém não devia sofrer eu não devia, mas sofro e é tudo o mesmo
Eu tenho o desvelo e a benção, mas sofro como um desesperado e nada posso
Sofro a pureza impossível, sofro o amor pequenino dos olhos de das mãos
Sofro porque a náusea dos seios gastos está amargurando a minha boca.

Não quero a esposa que eu violaria nem o filho que ergueria a mão sobre o meu rosto
Nada quero porque eu deixo traços de lágrimas por onde passo
Quisera apenas que todos me desprezassem pela minha fraqueza
Mas, pelo amor de Deus, não me deixeis nunca sozinho!

Ás vezes por um segundo a alma acorda para um grande êxtase sereno
Num sopro da suspensão e beleza passa e beija a fronte do homem parado
E então o poeta surge e do seu peito se ouve uma voz maravilhosa
Que palpita no ar fremente e envolve todos os gritos num só grito.

Mas depois, quando o poeta foge e o homem volta como de um sonho
E sente sobre a sua boca um riso que ele desconhece
A cólera penetra em seu coração e ele renega a poesia
Que veio trazer de volta o princípio de todo o caminho percorrido.

Todos os momentos estão passando e todos os momentos estão sendo vividos
A essência das rosas invade o peito do homem e ele se apazigua no perfume
Mas se um pinheiro uiva no vento o coração do homem cerra-se de inquietude
No entanto, ele dormirá ao lado dos pinheiros uivando e das rosas recendendo.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne e à memória
Eu sou como o velho barco longe do mar, cheio de lamentações no vazio do bojo
No meu ser todas as agitações se anulam - nada permanece para a vida
Só eu permaneço parado dentro do tempo passando, passando, passando...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Saudades do meu Recife. Meu também, mesmo hoje tão diferente do cantado pelo imortal Manuel Bandeira.


Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras,
mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

Coelho sai!
Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)

De repente
nos longos da noite
um sino

Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
......onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora
......onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe
- Capiberibe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido

Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam

Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.

Manoel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Mario Quintana só queria levar para o seu amor uns versos muito lindos. Mas por não saber o poeta o que dizer, um poema morreu.


Eu queria trazer-te uns versos


Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Sua palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para os ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente de puro, ao
vento da Poesia...
como uma pobre lanterna que incendiou!

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Mario_Quintana

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Os três reis ensinaram o povo menino a falar a língua misturada de Babel e da América.E nasceu a língua brasileira, nos versos de Menotti del Picchia.


Língua Brasileira


O povo menino
no seu presepe de palmeiras
aguardou as oferendas de Natal.

A nau primeira
trouxe o Rei do Ocidente
que lhe deu o tesouro sem-par
do Cantar de Amigo,
dos Autos de Gil Vicente
e, depois, a epopéia de Camões.

No navio negreiro
veio o Melchior do mocambo
talhado em azeviche como um ídolo benguela,
com a oferta abracadabrante e gutural
dos monossílabos de cabala.

Nos transatlânticos e cargueiros,
o Rei Cosmopolita,
que tem as cores do arco-íris
e os ritmos de todos os idiomas,
trouxe-lhe o régio presente
das articulações universais.

Os três reis fizeram um acampamento das raças
e ensinaram o povo menino
a falar a língua misturada
de Babel e da América.

E assim nasceste,
ágil, acrobática, sonora, rica e fidalga,
ó minha língua brasileira!

Menotti Del Picchia
(1892-1988)

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É difícil fotografar o silêncio, mas Manoel de Barros tentou. E gostou, para ele a foto saiu legal.


O fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei sobre. Foi difícil fotografar sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros

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Cora Coralina era tão pequena quando seu pai se foi com sua toga de Juiz. E ela ficou sempre pequenina na falta que ele lhe fez.


Meu Pai


Meu pai se foi com sua toga de Juiz.
Nem sei quem lhe vestiu.
Eu era tão pequena,
mal nascida.
Ninguém me predizia - vida.

Nada lhe dei nas mãos.
Nem um beijo,
uma oração, um triste ai.
Eu era tão pequena! ...
E fiquei sempre pequenina na grande
falta que me fez meu pai.

Cora Coralina
(1889-1985)

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Nos versos de Jorge de Lima, o homem deve se lembrar que é apenas um pobre esquimó entre o gelo da terra e a última noite que o libertou do mundo.


As palavras de despedida


E ouvirás em cada século que passa
um ruído que se perde no tempo;
e o último cometa que apenas passou ontem;
e os oceanos renovarem suas águas muitas vezes.
Verás várias constelações te enviarem seus raios e se extinguirem depois.
Confrontarás tua infância com a dos filhos do Sol.
Reconhecerás as estrelas que jogaram pedras
quando eras um simples homem nos caminhos da vida.
Recensearás como Abraão os astros que puderes contar.
Contemplarás a morte prematura das luas
e a vida misteriosa das estrelas.
Reconstituirás o jogo da criação e o trono da primeira mulher.
Avistarás centenas de milhões de eclipses se produzirem simultaneamente.
E centenas de milhões de labaredas em espiral subirem até o trono do Mestre.
E te lembrarás que eras um pobre esquimó entre o gelo da terra
e a última noite que te libertou do mundo.


Jorge de Lima
(1893-1953)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

Não perguntem pelo meu poema, pede Lya Luft. Se não podem amá-lo, deixem que seja somente um poema.


Canção da mulher que escreve

Não perguntem pelo meu poema:
Nada sei do coração do pássaro
Que a música inflama.

Não queiram entender minhas palavras:
Não me dissequem, não segurem entre vidros
Essas canções, essas asas, essa névoa.
Não queiram me prender como a um inseto
No alfinete da interpretação:
Se não podem amar o meu poema, deixem
Que seja somente um poema.

(Nem eu ouso erguê-lo entre meus dedos e perturbar a sua liberdade).


Lya Luft


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sábado, fevereiro 23, 2008

Esta velha angústia que traz com com ele há séculos, transbordou. Em sua dor, lamenta Álvaro de Campos: se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!


Esta velha


Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

O tempo é indivisível, qual o sentido do calendário? Para Mário Quintana, não é de uma vez que se morre e todas as horas são horas extremas.


Pequeno poema didático


O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Vem depressa, ó meu destino, que é que me trazes de tão longe? Sentada há muito na porta do seu sonho, Cecília Meireles solta seu grito em versos.


Inicial


Lá na distância, no fugir das perspectivas,
por que vagueiam, como o sonho sobre o sonho.
aquelas formas de neblinas fugitivas?

Lá na distância, no fugir das perspectivas,
lá no infinito, lá no extremo... no abandono...

Aquelas sombras na vagueza da paisagem,
que tem brancuras de crepúsculos do Norte,
dão-me a impressão de vir outrora... de uma viagem...

Aquelas sombras, na vagueza da paisagem,
dão-me a impressão do que se vê depois da morte...

Lá muito longe, muito longe, muito longe,
anda o fantasma espiritual de um peregrino...
Lembra um rei-mago, lembra um santo, lembra um monge...

Lá muito longe, muito longe, muito longe,
anda o fantasma espiritual do meu destino...

Anda em silêncio: alma do luar... forma do aroma...
Lembrança morta de uma história reticente
que nos contaram noutra vida e noutro idioma...

Anda em silêncio: alma do luar... forma do aroma...
Lá na distância... O meu destino... Vagamente...

Sentei-me a porta do meu sonho, há muito, nessa
dúvida triste de um infante pequenino,
a quem fizeram certa vez uma promessa...

Que é que me trazes de tão longe? Vem depressa!
Ó meu destino, Ó meu destino! Ó meu destino!...

Cecília Meireles

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De um lado, Murilo Mendes tem o sonho, a namorada, o amor, um anjo da guarda, o trabalho. Do outro lado, pensamentos sérios, a noiva e a morte.


Os dois lados


Deste lado tem meu corpo
Tem o sonho
Tem a minha namorada na janela
Tem as ruas gritando de luzes e movimentos
Tem meu amor tão lento
Tem o meu anjo da guarda
Que às vezes se esquece de me guardar
Tem o mundo batendo na minha memória
Tem o caminho para o trabalho.

Do outro lado tem outras vidas vivendo a minha vida
Tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
Tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão
Tem a morte, as colunas da ordem e da desordem

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Não trago Deus em mim, mas no mundo o procuro sabendo que o real o mostrará. E a hora da minha morte aflora lentamente, sente Sophia de Mello Breyner.


Poema

A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

Sophia de Mello Breyner

(1919-2004)

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Supreendido pela ternura, Augusto Frederico Schmidt se sente tocado pelo espanto do amor. E vencido pela certeza de que findara sua longa solidão.


O fim da solidão


A borboleta amarela e preta
Se agitava, dançava, tremia
Em torno do ser esguio, mortificado
Pelo frio do mundo.

Era já na hora indecisa, mas um sol
Retardatário manchava de ouro o chão sombrio.

Revejo a face escura e pálida
Manchada pelo líquen, pelo pó
Das velhas folhas.

Revejo o olhar inocente e duro
Subitamente surpreendido pela ternura,
O olhar prisioneiro do tempo cruel,
Tocado pelo amor, animado pelo espanto do amor,
O olhar de fugitivo do abandonado,
De repente vencido pela certeza de que
Findara sua longa solidão.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

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Voar com a asa ferida, que mais foi que fiz na vida? A asa arde, voar isso não dói, este o sentimento de Paulo Leminski de suas asas e azares.


Asas e Asares


Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi.

Paulo Leminski
(1944-1989)

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Quem te ouvir não entenderá essas cantigas que trouxeste do fundo do mar morto. Mas teu segredo é meu, diz Carlos Pena em seus lindos versos de amor.


Marinha


Tu nasceste no mundo do sargaço
da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
dormem peixes de prata em teu regaço.

Descobri tua origem, teu espaço,
pelas canções marinhas que semeias.
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso teu olhar é triste e baço.

Mas teu segredo é meu, ó, não me digas
onde é tua pousada, onde é teu porto,
e onde moram sereias tão amigas.

Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
pois não entenderá essas cantigas
que trouxeste do fundo do mar morto.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

Para Dante Milano, a diferença entre o falso e o verdadeiro amor é nula. O falso amor é verdadeiro e o verdadeiro falso.


Poema do falso amor


O falso amor imita o verdadeiro
Com tanta perfeição que a diferença
Existente entre o falso e o verdadeiro

É nula. O falso amor é verdadeiro
E o verdadeiro falso. A diferença
Onde está? Qual dos dois é o verdadeiro?

Se o verdadeiro amor pode ser falso
E o falso ser o verdadeiro amor,
Isto faz crer que todo amor é falso

Ou crer que é verdadeiro todo amor.
Ó verdadeiro Amor, pensam que és falso!
Pensam que és verdadeiro, ó falso Amor!

Dante Milano
(1899-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Como Olavo Bilac, ninguém cantou em versos o amor à língua portuguesa. A última flor do Lácio, inculta e bela, o nosso rude e doloroso idioma.



Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho"!
E em que Camões chorou, exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

Augusto dos Anjos não quer o seu sonho sepultado no cemitério da Desilução. Ele vive das crenças que passaram e quer sempre tê-las ao seu lado.


Tempos idos

Não enterres, coveiro, o meu Passado,
Tem pena dessas cinzas que ficaram;
Eu vivo dessas crenças que passaram,
e quero sempre tê-las ao meu lado!

Não, não quero o meu sonho sepultado
No cemitério da Desilusão,
Que não se enterra assim sem compaixão
Os escombros benditos de um Passado!

Ai! Não me arranques d'alma este conforto!
- Quero abraçar o meu passado morto,
- Dizer adeus aos sonhos meus perdidos!

Deixa ao menos que eu suba à Eternidade
Velado pelo círio da Saudade,
Ao dobre funeral dos tempos idos!

Augusto dos Anjos

(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Se descuidar, o amor te pega, te come, te molha todo, avisa Adélia Prado a quem pode. E lembra, mas água o amor não é.


Corridinho

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
se descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Affonso Romano de Sant'Anna sentiu tantas vezes a força de seus desejos que escreveu um poema de amor. Amor à vida.


Desejos


Disto eu gostaria:
ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.

Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
-Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação,
e não:-Os preços do mercado estão um horror!

Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
-As formigas neste inverno estão dando tempo às flores,
e não:-Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.

Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações
dos pássaros
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro.

Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.

Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos.

Affonso Romano de Sant'Anna

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

Quero sofrer e amar essa dor que desmaia de paixão. Quero viver um momento e morrer de amor contigo, canta em versos um apaixonado Álvares de Azevedo.


Amor

Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!

Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Álvares de Azevedo
(1831-1852 )

Mais sobre Álvares de Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo

sábado, fevereiro 09, 2008

Se estiver morto quando vier a Primavera, podem dançar e cantar ao redor do meu caixão. O que for, quando for, é que será o que é, diz Alberto Caeiro.


Quando vier a Primavera 

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de  

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Quando é que sai o pagamento? Nos versos de Carlos Drummond, o pagamento está difícil, tão difícil que, quando saíu, não havia mais quem recebesse.


O pagamento

Quando é que sai o pagamento?
O pagamento está difícil.

Quando se fará a folha
e se construirá a máquina
que fará o cálculo e os descontos?

E quando se fabricará o dinheiro,
espécia nova de dinheiro,
para fazer o pagamento?
Quem receberá no primeiro lote
quem no segundo e no terceiro
se antes de tudo vier a morte
poupar serviço ao tesoureiro?

O pagamento será difícil.

A espera, quem é que paga a espera
e os extraordinários da esperança
e os serviços (esquecidos) dos pais
e dos avós e dos antiquérrimos?

O pagamento está difícil.

Que contador porá em dia as contas
e qual será o seu critério?
Irá medir produtividade
assiduidade, pequenos méritos
oblíquas faltas, imperfeitos
serões, tarefas de má vontade?
Só sairá o pagamento
depois do inquérito concluído?

O pagamento está difícil.

Nem um simples apontamento
foi tomado, não há controle
e direção?
Ou não houve serviço nunca,
ninguém jamais se empregou
nem patrões existiram nem
saíu produção de nada?
Não houve encomenda de nada
na fábrica inexistente,
e ninguém podia tomar nota
alguma em nenhum escritório?
Não cabe pois reclamar
nem salário nem horas extras
nem demora ou juros de mora?

O pagamento está difícil.

Difícil é o pagamento
ou conceber a estranha folha
que nunca sai
e saindo, não se registra
e registrada, não se paga
e pagando, não vale a cédula
e valendo, o vento a carrega
e carregando, foi bem feito
se não havia o que pagar?

O pagamento está difícil
ou já foi feito antes de tudo
há 40 anos, à sorrelfa
que ninguém lembra ou se acaso lembra
é que o dinheiro era falso
era marcado era maldito
era por todos refugado?

O pagamento está difícil?
Depois de tão anunciado,
solenemente prometido,
foge o caixa, são massacrados
os condutores do dinheiro
tudo é furtado num segundo
e o próprio assalto é simulado?

Some a idéia do pagamento
de tal sorte que niguém mais
lhe conhece o significado
e o que reclamam não reclamam
com intenção de receber
mas por força do triste hábito?
e tornam-se mudos
de voz e gesto
e se esquecem todos
de reclamar e de adiar
e de negar?

Então, de todos olvidado
não mais pensado ou referido
nem na lousa dos dicionários
o pagamento - afinal - saiu.
Para cada um e seu irmão,
seu amigo e seu inimigo,
seu desconhecido, seu antípoda,

seu ascendete e descendente,
seu curió demissionário, seu gato escaldado, seu cachorro caduco,
suas plantinhas de vaso (sem sol) da janela,
seu coração
de válvulas paradas
seu coração
entranhado de cisco
seu coração
já sem forma de
coração.

O pagamento total geral
saiu! saiu!
o pagamento sem escrita
sem cifrão
sem limitação
sem explicação
sem razão
sem código
sem termo
saiu.

Não havia quem recebesse.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Vinicius de Moraes se surpreendeu quando a rosa ficou rubra de indignação com a sua oração. E o passarinho ainda fez um cocozinho na sua cabeça.


O Poeta e a Rosa
( E com direito a passarinho)

Ao ver uma rosa branca
O poeta disse: Que linda!
Cantarei sua beleza
Como ninguém nunca ainda!

Qual não é sua surpresa
Ao ver, à sua oração
A rosa branca ir ficando
Rubra de indignação.

É que a rosa, além de branca
(Diga-se isso a bem da rosa...)
Era da espécie mais franca
E da seiva mais raivosa.

– Que foi? – balbucia o poeta
E a rosa; – Calhorda que és!
Pára de olhar para cima!
Mira o que tens a teus pés!

E o poeta vê uma criança
Suja, esquálida, andrajosa
Comendo um torrão da terra
Que dera existência à rosa.

– São milhões! – a rosa berra
Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome!...

E num acesso de ira
Arranca as pétalas, lança-as
Fora, como a dar comida
A todas essas crianças.

O poeta baixa a cabeça.
– É aqui que a rosa respira...
Geme o vento. Morre a rosa.
E um passarinho que ouvira

Quietinho toda a disputa
Tira do galho uma reta
E ainda faz um cocozinho
Na cabeça do poeta.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma carta... antes escrever os Lusíadas. Sabes, Beatriz, eu vou morrer, confessa Mario Quintana.


Carta desesperada

Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma carta...
Antes escrever os Lusíadas!
Com uma carta pode acontecer
Que qualquer mentira venha a ser verdade...
Olha! O melhor é te descrever, simplesmente,
A paisagem,
Descrever sem nenhuma imagem, nenhuma...
Cada coisa é ela própria a sua maravilhosa imagem!
Agora mesmo parou de chover.
Não passa ninguém. Apenas
Um gato
Atravessa a rua
Como nos tempos quase imemoriais
Do cinema silencioso...
Sabes, Beatriz? Eu vou morrer!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Quando tinha seis anos, o poeta ganhou um porquinho-da-índia. Para Manuel Bandeira, o bichinho foi a sua primeira namorada.


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Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Fazer o que seja é inútil e não fazer nada é inútil. Mas entre fazer e o não fazer, mais vale o inútil do fazer, diz João Cabral de Melo Neto.


O artista inconfessável



Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer.
que é inútil: nunca o esquecer
Mas fazer o inútil, sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e difícilmente
se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor.Ninguém
que o feito e foi para ninguém.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Me dê coragem meu Deus, me dê a coragem de me enfrentar. E perdoe o meu pecado de pensar, implora Clarice Lispector.


Meu Deus, me dê a coragem


Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
meu pecado de pensar.

Clarice Lispector
(1920-1977)

Mais sobre Clarice Lispector em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector

Em seu canto de amor, Cecília Meireles nunca tivera querido dizer palavra tão louca. O vento bateu e levou somente a palavra, deixou ficar o sentido.


Canção


Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca
bateu-me o vento na boca
e depois no teu ouvido.


Levou somente a palavra,
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste período suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Esta tristeza não viste,
E eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
Fechou teus olhos, também...


Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Em seus versos, Florbela Espanca diz que filhos são nossas almas desabrochadas em flores. E ela sofre pelas saudades dos filhos que nunca teve.


Filhos

Filhos são as nossas almas,
Desabrochadas em flores;
Filhos, estrelas caídas
No fundo das nossas dores!

Filhos, aves que chilreiam
No ninho do nosso amor,
Mensageiros da felicidade
Mandados pelo Senhor!

Filhos, sonhos adorados,
Beijas que nascem de risos;
Sol que aquenta e dá luz
E se desfaz em sorrisos!

Em todo o peito bendito
Criado pelo bom Deus,
Há uma alma de mãe
Que sofre p´los filhos seus!

Filhos! Na su´alma casta,
A nossa alma revive…
Eu sofro pelas saudades
Dos filhos que nunca tive!…

Florbela Espanca

(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Este fevereiro, azul como a chama da paixão, tem o desatino de tudo que está para se acabar. Mas não desiste de viver, resiste, diz Ferreira Gullar.


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Verão

Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração

deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.

A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.

E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.

O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida

Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.

E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda em agonia
resiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
E essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.

Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração - resiste.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

O tempo é nada mais que uma invenção de quem tem medo de ficar eterno, diz em versos Thiago de Mello. Para ele, o tempo é o seu pecado original.


O tempo dentro do espelho

O tempo não existe, meu amor
O tempo é nada mais que uma invenção
de quem tem medo de ficar eterno.
De quem não sabe que nada se acaba,
que tudo o que se vive permanece
cinza de amor ardendo na memória.
O tempo passa? Ai, quem me dera! O tempo
fica dentro de mim, cantando fica
ou me queimando, mas sou eu quem canto
eu que me queimo, o tempo nada faz
sem mim que lhe permito a minha vida.
De mim depende, sou sua matéria,
esterco e flor do chão da minha mente,
o tempo é o meu pecado original.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello