terça-feira, outubro 09, 2007

Quando um dia não estiver mais presente à festa da vida, diz Ferreira Gullar, continue a executar a sinfonia do verão dessa orquestra regida pelo Sol.


Morrer no Rio de Janeiro

Se for março

quando o verão esmerila a grossa luz

nas montanhas do Rio

teu coração estará funcionando normalmente

entre tantas outras coisas que pulsam na manhã

ainda que possam de repente enguiçar.

Se for março e de manhã

as brisas cheirando maresia

quando uma lancha deixa seu rastro de espumas no dorso da baía

e as águas se agitam alegres por existirem

se for março

nenhum indício haverá

nas frutas sobre a mesa

nem nos móveis que estarão ali como agora

- e depois do desenlace - calados.

Tu de nada suspeitas

e te preparas para mais um dia no mundo.

Pode ser que de golpe

ao abrires a janela para a esplêndida manhã

te invada o temor:

"um dia não mais estarei presente à festa da vida".

Mas que pode a morte em face do céu azul?

do alvoroço do verão?

A cidade estará em pleno funcionamento

com suas avenidas ruidosas

e aciona este dia

que atravessa apartamentos e barracos

da Barra ao morro do Borel, na Glória

onde mendigos estendem roupas

sob uma passarela do Aterro

e é quando um passarinho

entra inadivertidamente em tua varanda, pia

saltita e se vai.

Uma saudação? um aviso?

Essas perguntas te assaltam misturadas

ao jorrar do chuveiro

persistem durante o café da manhã

com iogurte e geléia. Mas o dia

te convida a viver, quem sabe

um passeio a Santa Teresa para ver do alto

a cidade noutro tempo do agora.

Em cada recanto da metrópole desigual

nos tufos de capim no Lido

nos matos por trás dos edifícios da rua Toneleros

por toda a parte a cidade

minunciosamente vive o fim do século,

sua história de homens e de bichos,

de plantas e de larvas,

de lesmas e de levas

de formigas e outros minúsculos seres

transitando nos talos, nos pistilos, nos grelos que se abrem

como clitóris na floresta.

são sorrisos, são ânus, caramelos,

são carícias de línguas e de lábios

enquanto

terminando o café

passas o olho no jornal.

A morte se aproxima e não o sentes

nem pressentes

não tens ouvido para o lento rumor que avança escuro

com as nuvens

sobre o morro Dois Irmãos

e dança nas ondas

derrama-se nas areias do Arpoador

sem que o suspeites a morte

desafina no cantarolar da vizinha na janela.

Teu coração

(que começou a bater quando nem teu corpo existia)

prossegue

suga e expele sangue

para manter-te vivo

e vivas

em tua carne

as tardes e ruas (do Catete, da Lapa, de Ipanema)

- as lancinantes vertigens dos poemas

que te mostraram a morte num punhado de pó

o torso de Apolo

ardendo como pele de fera a boca da carranca

dizendo sempre a mesma água pura na noite

com seus abismos azuis -

teu coração,

esse mínimo pulsar dentro da Via Láctea,

em meio a tempestades solares,

quando se deterá?

Não o sabes pois a natureza ama se ocultar.

E é melhor que não o saibas

para que seja por mais tempo doce em teu rosto

a brisa deste dia

e continues a executar

sem partitura

a sinfonia do verão como parte que és

dessa orquestra regida pelo Sol.

Ferreira Gullar

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

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