sexta-feira, junho 29, 2007

Ferreira Gullar sofre porque sabe como homens de vida amarga e dura produziram este açúcar que adoça o seu café, em uma manhã de Ipanema.


O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Para Menotti del Picchia, a beleza das coisas, como o sol que fascina, a deixava cega e feria. Mas nunca bastava para ela em seu deslumbramento.


Beleza

A beleza das coisas te devasta
como o sol que fascina mas te cega.
Delas contundo a luminosa entrega
nunca se dá, melhor, nunca te basta.

E a imensa paz que para além te arrasta
quanto mais se te esquiva ou te renega...
Paz tão do alto e paz dessa macega
que nos campos esplende à luz mais casta.
A beleza te fere e todavia
afaga, uma emoção (sempre a primeira e nunca
repetida) que conduz

o teu deslumbramento para um dia
à noite misturado, na clareira
em que te sentes noite em plena luz.

Menotti del Picchia

(1892-1988)

Mais sobre Menotti del Picchia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

Com o rosto em seu ventre, Dante Milano adorou o corpo da sua amada. E compreendeu tudo, desde o princípio do Mundo.

Corpo

Adorei teu corpo,
Tombei de joelhos.
Escostei a fronte,
O rosto, em teu ventre.
Senti o gosto acre
De santidade
Do corpo nu.
Absorvi a existência,
Vi todas as coisas numa coisa só,
Compreendi tudo desde o princípio do Mundo.

Dante Milano

(1899-1991)

Mais sobre Dante Milano em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano


Em seu amoroso esquecimento, Mario Quintana abre seu coração para nos lembrar que o amor também tem a sua própria dialética.


Do amoroso esquecimento


Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Mario Quintana
(1905-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Thiago de Mello atravessou o incêndio e continuou a cantar. Porque mais que viver, o que importa é trabalhar na mudança do que é preciso mudar.


Volto armado de amor

Volto armado de amor
para trabalhar cantando
na construção da manhã.
Anor dá tudo o que tem.
Reparto a minha esperança
e planto a clara certeza
da vida nova que vem.

Um dia, a cordilheira em fogo,
quase calaram para sempre
o meu coração de companheiro.
Mas atravessei o incêndio
e continuo a cantar.

Ganhei sofrendo a certeza
de que o mundo não é só meu.
Mais que viver, o que importa
(antes que a vida apodreça)
é trabalhar na mudança
de que é preciso mudar.

Cada um na sua vez,
cada qual no seu lugar.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Augusto dos Anjos é aquele que ficou sozinho. Cantando a poesia de tudo quanto é morto.


O poeta do hediondo


Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!


Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

quarta-feira, junho 27, 2007

Como as mulheres são lindas e não é por causa dos vestidos, pensava Manuel Bandeira. Mas, para ele, bom mesmo devia ser gostar de uma feia.


Como as mulheres são lindas


Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é pisada e batida e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! É fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...

És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam
no morro atrás de casa e tinham cara de pau).

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira


Torquato Neto era como era, pronome pessoal intransferível. E pensava viver tranquilamente todas as horas do fim.


Cogito


eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

Torquato Neto
(1944-1972)

Mais sobre Torquato Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Torquato_Neto

Só quando tivesse setenta anos, quando acabasse a adolescência, Paulo Leminski ia largar da vida louca e ver tudo em sã consciência.


Quando eu tiver setenta anos


quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_leminski

terça-feira, junho 26, 2007

Amei tanto, que agora nem sei mais chorar, confessou Vinicius em versos. E ainda reconheceu, a solidão é o fim de quem ama.


Amei tanto

Nunca fui covarde
Mas agora é tarde
Amei tanto
Que agora nem sei mais chorar

Vivi te buscando
Vivi te encontrando
Vivi te perdendo
Ah, coração, infeliz até quando?
Para ser feliz
Tu vais morrer de dor

Amei tanto
Que agora nem sei mais chorar

Nunca fui covarde
Mas agora é tarde
É tarde demais enfim
A solidão é o fim de quem ama
A chama se esvai, a noite cai em mim

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes


Nos versos de Murilo Mendes, o mundo vai mudar a cara. E a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.


Mapa


Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
depois, chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei bem o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Onde esconder a minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes,
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens "práticos"...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcedente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores rasos que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Foi noite de chuva nos mares do mundo. Se tivesse um barco, Ribeiro Couto teria partido naquele instante.


Cais matutino


Mercado de peixe, mercado de aurora:
Cantigas, apelos, pregões e risadas
À proa dos barcos que chegam de fora.

Cordames e redes dormindo no fundo;
À popa estendida, as velas molhadas;
Foi noite de chuva nos mares do mundo.

Pureza do largo, pureza da aurora.
Há viscos de sangue no solo da feira.
Se eu tivesse um barco, partiria agora.

O longe que aspiro no vento salgado
Tem gosto de um corpo que cintila e cheira
Para mim sozinho, num mar ignorado.


Ribeiro Couto
(1898-1963)

Mais sobre Ribeiro Couto em
http://www.biblio.com.br/conteudo/biografias/ribeirocouto.htm

segunda-feira, junho 25, 2007

Quando ele nasceu, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: "Vai, Carlos, ser gauche na vida". E ele foi, para nossa felicidade.


Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As coisas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mas vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Nunca morrer assim, num dia de um sol assim, lamenta Olavo Bilac. E ela vendo retorcer-se a boca que beijava a sua boca ardente, a boca que foi dela.


In extremis


Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! de um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! postos nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...

E aqui dentro, o silêncio...E este espanto! e este medo!
Nós dois...e, entre nós dois, implacável e forte,
A arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...
Eu, com o frio a crescer no coração, - tão cheio
De ti, até no horror do derradeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!

E eu morrendo! e eu morrendo
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão belo palpitar nos teus olhos, querida,
A delícia da vida! a delícia da vida!


Olavo Bilac
(1865-1918)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

Sobre um mar de rosas que ardia em ondas fulvas, os olhos de Pedro Kilkerry erravam como as naus dentro da tarde.


Sobre um mar de rosas que arde


Sobre um mar de rosas que arde
Em ondas fulvas, distante,
Erram meus olhos, diamante,
Como as naus dentro da tarde.

Asas no azul, melodias,
E as horas são velas fluidas
Da nau em que, oh! alma, descuidas
das esperanças tardias.

Pedro Kilkerry
(1855-1917)

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quarta-feira, junho 20, 2007

Se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha alguém gostar de mim? Cecília Meirelles se pergunta e ela mesmo responde: aqui estou, cantando.


Discurso

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

Cecília Meireles

(1901-1964)

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Florbela Espanca pergunta ao seu maior bem: que me importa a mim que não me queiras, se esta dor é, na vida, tudo quanto eu tenho neste mundo?


O maior bem


Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente,
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a toda gente.

Mesmo a beijar-me a tua boca mente…
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Pousa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...

Mas que me importa a mim que não me queiras,
Se esta pena, esta dor, estas canseiras,
Este mísero pungir, árduo e profundo

Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
É, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?

Florbela Espanca

(1894-1930)

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Para o Zé, Adélia Prado escreveu um dos poemas de amor mais lindos que uma mulher já dedicou a um homem.


Para o Zé


Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe - os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo homem, amo,
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua arma. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vaguando atrás dos rebanhos de teus companheiros".
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

Adélia Prado

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Para não perder o momento belo, Lya Luft quer vivê-lo mais, com a intensidade que exige a vida. Então, se corta ao meio e se solta.


Rosto com dois perfis


Renuncio às palavras
e às explicações.
Ando pelos contornos,
onde todos os significados
são sutis, são mortais.

Não quero perder o momento
belo. Quero vivê-lo mais,
com a intensidade que exige a vida:
desgarramento e fulguração.

Então me corto ao meio e me solto
de mim:
a que se prende e a que voa,
a que vive e a que se inventa.
Duplo coração:
a que se contempla e a que nunca
se entende,
a que viaja sem saber se chega
- mas não desiste jamais.

Lya Luft

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Com toda a humildade que Deus lhe deu, Cora Coralina pede: Senhor, fazei com que eu aceite minha pobreza tal como sempre foi.


Humildade


Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.


Cora Coralina
(1889-1985)

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De Hilda Hilst para um grande amor: Como se te perdesse, assim te quero. E como não te visse, te respiro inteiro.


Amavisse


Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hilda Hilst
( 1930-2004)

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sábado, junho 16, 2007

Para Carlos Drummond, amor é primo da morte e da morte vencedor. Por mais que o matem (e matam), a cada instante de amor.


As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Entre tantas perguntas que se fazia, a que mais preocupava Vinícius de Moraes era: quem vai pagar o enterro e as flores se eu me morrer de amores?


A hora íntima

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: - Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: - Rei morto, rei posto. . .
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: - Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cais
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: - Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Manuel Bandeira não ouvia mais as vozes daquele tempo das noites de São João. Estavam todos deitados, dormindo, profundamente.


Profundamente


Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Para Mario Quintana, as coisas que não conseguem ser olvidadas continuam acontecendo. Razão tinha o poeta inglês que não conseguiu morrer.


Uma alegria para sempre


As coisas que não conseguem ser
olvidadas continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre onde as datas
não datam. Só no mundo do nunca
existem lápides...que importa se
depois de tudo - tenha "ela" partido,
casado, sumido, esquecido,
enganado, ou que quer que te haja
feito, em suma? Tiveste uma parte da
sua vida que foi só tua e, esta, ela
jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto
deves à ingrata criatura...
A thing of beauty is a joy for ever
- disse, há cento e muitos anos, um poeta
inglês que não conseguiu morrer.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana






sexta-feira, junho 15, 2007

Pablo Neruda, em "Veinte poemas de amor y una canción desesperada - Poema XIV", por ele mesmo.


Veinte poemas de amor y una canción desesperada - Poema XIV


Juegas todos los días con la luz del universo.
Sutil visitadora, llegas en la flor y en el agua.
Eres más que esta blanca cabecita que aprieto
como un racimo entre mis manos cada día.

A nadie te pareces desde que yo te amo.
Déjame tenderte entre guirnaldas amarillas.
Quién escribe tu nombre con letras de humo entre las estrellas del sur?
Ah déjame recordarte como eras entonces, cuando aún no existías.

De pronto el viento aúlla y golpea mi ventana cerrada.
El cielo es una red cuajada de peces sombríos.
Aquí vienen a dar todos los vientos, todos.
Se desviste la lluvia.

Pasan huyendo los pájaros.
El viento. El viento.
Yo solo puedo luchar contra la fuerza de los hombres.
El temporal arremolina hojas oscuras
y suelta todas las barcas que anoche amarraron al cielo.

Tú estás aquí. Ah tú no huyes.
Tú me responderás hasta el último grito.
Ovíllate a mi lado como si tuvieras miedo.
Sin embargo alguna vez corrió una sombra extraña por tus ojos.

Ahora, ahora también, pequeña, me traes madreselvas,
y tienes hasta los senos perfumados.
Mientras el viento triste galopa matando mariposas
yo te amo, y mi alegría muerde tu boca de ciruela.

Cuánto te habrá dolido acostumbrarte a mí,
a mi alma sola y salvaje, a mi nombre que todos ahuyentan.
Hemos visto arder tantas veces el lucero besándonos los ojos
y sobre nuestras cabezas destorcerse los crepúsculos en abanicos girantes.

Mis palabras llovieron sobre ti acariciándote.
Amé desde hace tiempo tu cuerpo de nácar soleado.
Hasta te creo dueña del universo.
Te traeré de las montañas flores alegres, copihues,
avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos.

Quiero hacer contigo
lo que la primavera hace con los cerezos.

Pablo Neruda

( 1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

O amor e a morte, a sinfonia barroca da vida, para o grande poeta Ariano Suassuna.


O Amor e a Morte

Com tema de Augusto dos Anjos

Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
— ó Corça branca, ó ruiva Leoparda.

O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.

Vê: um dia, a bigorna desses Paços
cortará, no martelo de seus aços,
e o sangue, hão de abrasá-lo os inimigos.

E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirá, contra nós, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos Dragões antigos.

Ariano Suassuna
(1927)


Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

quinta-feira, junho 14, 2007

Queria tanto saber porque sou eu, se afligia Florbela Espanca. Quem sabe?


Quem sabe?

Queria tanto saber porque sou eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber porque seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!

Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mau, para o perjuro?
Para onde vai a alma, que morreu?
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!

A estrada de Damasco, o meu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!

Quem sabe se este anseio de eternidade,
A tropeçar na sombra, é a verdade,
É já a mão de Deus que me acalenta?

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Alegre ou triste, amor é a coisa que mais Adélia Prado quer. E ela é de pedra sabão.


O sempre amor

Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é a coisa que mais quero.
Por causa dele falo palavras como lanças.

Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é a coisa que mais quero.
Por causa dele podem entalhar-me,
sou de pedra sabão.

Alegre ou triste,
amor é a coisa que mais quero

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quarta-feira, junho 13, 2007

Clarice Lispector era uma pergunta. Por que?


Sou uma pergunta


Quem fez a primeira pergunta?
Quem fez o mundo?
Se foi Deus, quem fez Deus?
Por que dois e dois são quatro?
Quem disse a primeira palavra?
Quem chorou pela primeira vez?
Por que o Sol é quente?
Por que a Lua é fria?
Por que o pulmão respira?
Por que se morre?
Por que se ama?
Por que se odeia?
Quem fez a primeira cadeira?
Por que se lava roupa?
Por que se tem seios?
Por que se tem leite?
Por que há o som?
Por que há o silêncio?
Por que há o tempo?
Por que há o espaço?
Por que há o infinito?
Por que eu existo?
Por que você existe?
Por que há o esperma?
Por que há o óvulo?
Por que a pantera tem olhos?
Por que há o erro?
Por que se lê?
Por que há a raiz quadrada?
Por que há flores?
Por que há o elemento terra?
Por que há a gente quer dormir?
Por que acendi o cigarro?
Por que há o elemento fogo?
Por que há o rio?
Por que há a gravidade?
Por que e quem inventou os óculos?
Por que há doenças?
Por que há saúde?
Por que faço perguntas?
Por que não há respostas?
Por que quem me lê está perplexo?
Por que a língua sueca é tão macia?
Por que fui a um coquetel na casa do Embaixador da Suécia?
Por que a adida cultural sueca tem como primeiro nome Si?
Por que estou viva?
Por que quem me lê está vivo?
Por que estou com sono?
Por que se dão prêmios aos homens?
Por que a mulher quer o homem?
Por que o homem tem força de querer a mulher?
Por que há o cálculo integral?
Por que escrevo?
Por que Cristo morreu na cruz?
Por que minto?
Por que digo a verdade?
Por que existe a galinha?
Por que existem editoras?
Por que há o dinheiro?
Por que pintei um jarro de vidro de preto opaco?
Por que há o ato sexual?
Por que procuro as coisas e não encontro?
Por que existe o anonimato?
Por que existem os santos?
Por que se reza?
Por que se envelhece?
Por que existe câncer?
Por que as pessoas se reúnem para jantar?
Por que a língua italiana é tão amorosa?
Por que a pessoa canta?
Por que existe a raça negra?
Por que é que eu não sou negra?
Por que um homem mata outro?
Por que neste mesmo instante está nascendo uma criança?
Por que o judeu é raça eleita?
Por que Cristo era judeu?
Por que meu segundo nome parece duro como um diamante?
Por que hoje é sábado?
Por que tenho dois filhos?
Por que eu poderia perguntar indefinidamente por quê?
Por que o fígado tem gosto de fígado?
Por que a minha empregada tem um namorado?
Por que a Parapsicologia é ciência?
Por que vou estudar matemática?
Por que há coisas moles e coisas duras?
Por que tenho fome?
Por que no Nordeste há fome?
Por que uma palavra puxa a outra?
Por que os políticos fazem discurso?
Por que a máquina está ficando tão importante?
Por que tenho de parar de fazer perguntas?
Por que existe a cor verde-escuro?
Por quê?
É porque.
Mas por que não me disseram antes?
Por que adeus?
Por que até o outro sábado?
Por quê?

Clarice Lispector
(1920-1977)

Mais sobre Clarice Lispector em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector

Deita-te comigo e entre lábios e lábios toda a música será minha, pede Eugenio de Andrade ao seu amor.


Entre os teus lábios


Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

terça-feira, junho 12, 2007

Vinícius de Moraes, em "Soneto do amor total", por Vinícius de Moraes.



Soneto do Amor Total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Amar, segundo Carlos Drummond de Andrade.


Amar


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, junho 09, 2007

Fernando Pessoa & Antonio Carlos Jobim, em "Autopsicografia".


Autopsicografia


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as dores que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
e mais sobre Antonio Carlos Jobim em
http://en.wikipedia.org/wiki/Antonio_Carlos_Jobim

Em um momento de tristeza, a Manuel Bandeira só importava o que ele via de seu mundo.


Poema do beco


Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Guardei-me para ti, disse Lya Luft ao seu amor. Agora, preciso que me ensines a canção do que serei e me cries com teu gesto que nem sonhei.


Guardei-me para ti


Guardei-me para ti como um segredo
Que eu mesma não desvendei:
Há notas nesta guitarra que não toquei,
Há praias na minha ilha que nem andei.

É preciso que me tomes, além do riso e do olhar,
Naquilo que não conheço e adivinhei;
É preciso que me ensines a canção do que serei
E me cries com teu gesto
Que nem sonhei.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

sexta-feira, junho 08, 2007

Mario Quintana sabia que a morte sempre chega pontualmente na hora incerta. E invejava Tolstoi, que realizou um velho sonho da infância.


Poema da Gare do Astapovo


O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua...
Sentou-se... e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A Morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

quinta-feira, junho 07, 2007

Penetro-me do Verbo em seus silêncios claros, diz Jorge de Lima. E investe-se da fronte que o espia através dessa pedra em que nasce o seu dia.


"O céu jamais me dê a tentação funesta"

(de Invenção de Orfeu)

O céu jamais me dê a tentação funesta
de adormecer ao léu, na lomba da floresta,

onde há visgo, onde seca erva sucosa e fria,
carnívora decerto o sono nos espia.

Que culpa temos nós dessa planta da infânia,
de sua sedução, de seu viço e constância?

Minha cabeça estava em pedra, adormecida,
quando me sobreveio a cena pressentida.

Em sonâmbulo arriei as mãos e os pés culpados
dos passos e do gesto em vão desperdiçados.

Despi-me de outros bens, de glória mais modesta:
restava-me por fim a minha pobre testa

confundida com a pedra, em meio da floresta.
Que doces olhos têm as coisas simples e unas

onde a loucura dorme inteira e sem lacunas!
Agora posso ver as mãos entrecruzadas

e as plantas de meus pés nas entranhas amadas,
nesse início que é a clara insônia verdadeira.

Ó seres primordiais que sois testa e viseira,
restituo-me em vós, sangue e máscara vividos,

desejo de esquecer tempo e espaço existidos;
e em vós e em vossa paz meus solilóquios para-os,

penetro-me do Verbo em seus silêncios claros,
invisto-me de vós, vossa fronte me espia

através dessa pedra em que nasce o meu dia.

Jorge de Lima
(1893-1953)

Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

Em sua antiode contra a poesia dita profunda, João Cabral de Melo nos ensina que a palavra flor é o verso inscrito no verso, como as manhãs no tempo.


Antiode

(contra a poesia dita profunda)

A

Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

gerando cogumelos
(raros, frágeis cogu-
melos) no úmido
calor da nossa boca.

Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de dor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro.)

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

B

Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais

circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis

de vossas evocações?
Pelo pudor do verso
- pudor de flor -
por seu tão delicado

pudor de flor,
que só se abre
quando a esquece o
sono do jardineiro?)

Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de

duas pontas, como
uma corda). Depois
eu descobriria
as duas pontas

da flor; as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto

e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
- cristais de vômito.

C

Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?

(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite.)

Fome de vida? Fome
de morte, frequentação
da morte, como de
algum cinema.

O dia? Árido.
Venha, então a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor.

Venha, mais fácil e
portátil na memória
o poema, flor no
colete da lembrança.

Como não invocar,
sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti-

cultura? Pois estações
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães;

e mil mornos
enxertos, mil maneiras
de excitar negros
êxtases: e a morna

espera de que se
apodreça em poema
prévia exalação
da alma defunta.

D

Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo

flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude - em
disfarçados urinóis.)

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.

Flor é o salto
da ave para o vôo;
o salto fora do sono
quando seu tecido

se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.

E

Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és,
Sei que outras

palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,

contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe

como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Do observatório em que estava Augusto dos Anjos, a lua magra parecia um paralelepípedo quebrado. Logo depois, lembra a metade de uma casca de ovo.


Tristezas de um quarto minguante


Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d'Arco é muito triste...
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!

O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 kilos no epigastro...
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! Não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.

Aumentam-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!

Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!

Mas tudo isso é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que 6ª feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!

- Uma, duas, três, quatro...E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: - Uma...
Mas novamente eis-me a perder a conta!

Sucedo a uma tontura outra tontura.
- Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida - aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura!-

A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse...
Começo a ver coisas do Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho,
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.

Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa...
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roídos me assombraram..
- "Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram".

Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro...
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.

Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos - vis raízes adventícias -
No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rolo no tapete.
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!

A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!

Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
dos tenros tinhorões e da úmida erva.

Babujada por baixos beiços brutos,
No húmus feraz, hierática, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbulo dos frutos.

De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do regumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo de um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!

Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurebebas!

Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Se te pareço noturna e imperfeita, olha-me de novo. Com menos altivez e mais atento, diz Hilda Hilst ao amigo.


Dez chamamentos ao amigo


Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

Leminski teve a impressão que deus quis falar com ele. Mas não lhe deu ouvidos.


Eu ontem tive a impressão


eu ontem tive a impressão
que deus quis falar comigo
não lhe dei ouvidos
quem sou eu para falar com deus?
ele que cuide dos seus assuntos
eu cuido dos meus.


Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

terça-feira, junho 05, 2007

Pablo Neruda, em "Veinte poemas de amor y una canción desesperada - Poema XIII", por ele mesmo.



Veinte poemas de amor y una canción desesperada - Poema XIII

He ido marcando con cruces de fuego
el atlas blanco de tu cuerpo.
Mi boca era una araña que cruzaba escondiéndose.
En ti, detrás de ti, temerosa, sedienta.

Historias que contarte a la orilla del crepúsculo,
muñeca triste y dulce, para que no estuvieras triste.
Un cisne, un árbol, algo lejano y alegre.
El tiempo de las uvas, el tiempo maduro y frutal.

Yo que viví en un puerto desde donde te amaba.
La soledad cruzada de sueño y de silencio.
Acorralado entre el mar y la tristeza.
Callado, delirante, entre dos gondoleros inmóviles.

Entre los labios y la voz, algo se va muriendo.
Algo con alas de pájaro, algo de angustia y de olvido.
Así como las redes no retienen el agua.
Muñeca mía, apenas quedan gotas temblando.
Sin embargo, algo canta entre estas palabras fugaces.

Algo canta, algo sube hasta mi ávida boca.
Oh poder celebrarte con todas las palabras de alegría.
Cantar, arder, huir, como un campanario en las manos de un loco.
Triste ternura mía, qué te haces de repente?
Cuando he llegado al vértice más atrevido y frío
mi corazón se cierra como una flor nocturna.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Por Ipólita, Murilo Mendes viu seus sentidos progredirem. Por ela, o poeta foi voyeur antes do tempo.


Grafito para Ipólita


I
A tarde consumada. Ipólita desponta.

Ipólita, a putain do fim da infância,
Nascera em Juiz de Fora, a família em Ferrara.

Seus passos feminantes fundam o timbre.
Marchita, parece, ao som do gramafone.

A cabeleira-púbis, perturbante,
Os dedos prolongados em estiletes.

Os lábios escandindo a marselhesa
Do sexo. Os dentes mordem a matéria.

O olho meduseu sacode o espaço.
O corpo transmitindo e recebendo

O desejo o chacal a praga o solferino
Pudesse eu decifrar sua íntima praça!

Expulsa o sol-e-dó, a professora, o ícone,
Só de vê-la passar, meu sangue inobre

Desata as rédeas ao cavalo interno.

II
Quando tarde a revejo, rio usado,
Já a morte lhe prepara a ferramenta.

Deixa o teatro, a matéria fecal.
Pudesse eu libertar seu corpo (Minha cruzada!)

Quem sabe, agora redescobre o viso
Da sua primeira estrela, esquartejada.

III
Por ela meus sentidos progrediram.
Por ela fui voyeur antes do tempo.

IV
O dia emagreceu. Ipólita desponta.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Thiago de Mello canta em versos a sua vida verdadeira, vida estrume e rosa do amor. Mas é preciso merecer a vida.


A vida verdadeira


Pois aqui está a minha vida.
Pronta para ser usada.

Vida que não se guarda
nem se esquiva, assustada.
Vida sempre a serviço
da vida.
Para servir ao que vale
a pena e o preço do amor.

Ainda que o gesto me doa,
não encolho a mão: avanço
levando um ramo de sol.
Mesmo enrolado de pó,
dentro da noite mais fria,
a vida que vai comigo
é fogo:
está sempre acesa.

Vem da terra dos barrancos
o jeito doce e violento
da minha vida: esse gosto
da água negra transparente.

A vida vai no meu peito,
mas é quem vai me levando:
tição ardente velando,
girassol na escuridão.

Carrego um grito que cresce
Cada vez mais na minha garganta,
cravando seu cravo triste
na verdade do meu canto.

Canto molhado e barrento
de menino do Amazonas
que viu a vida crescer
nos centros da terra firme.
Que sabe a vinda da chuva
pelo estremecer dos verdes
e sabe ler os recados
que chegam na asa do vento.
Mas sabe também o tempo
da febre e o gosto da fome.

Nas águas da minha infância
perdi o medo entre os rebojos
Por isso avanço cantando.

Estou no meio do rio,
estou no meio da praça.
Piso firme no meu chão,
sei que estou no meu lugar
como a panela no fogo
e a estrela na escuridão.

O que passou não conta?. indagarão
as bocas desprovidas.

Não deixa de valer nunca.
O que passou ensina
com sua garra e seu mel.

Por isso é que agora vou assim
no meu caminho. Publicamente andando.

Não, não tenho caminho novo.
O que tenho de novo
é o jeito de caminhar.
Aprendi
(o caminho me ensinou)
a caminhar cantando
como convém a mim
e aos que vão comigo.
Pois já não vou mais sozinho.

Aqui tenho a minha vida:
feita à imagem do menino
que continua varando
os campos gerais
o que reparte o seu canto
como o seu avô
repartia o cacau
e fazia da colheita
uma ilha de bom socorro.

Feita à imagem do menino
mas à semelhança do homem:
com tudo que ele tem de primavera
de valente esperança e rebeldia.

Vida, casa encantada,
onde eu moro e mora em mim,
te quero assim verdadeira
cheirando a manga e jasmim.
Que me sejas deslumbrada
como ternura de moça
rolando sobre o capim.

Vida, toalha limpa,
vida posta na mesa
vida brasa vigilante,
vida pedra e espuma,
alçapão de amapolas,
o sol dentro do mar,
estrume e rosa do amor:
a vida.
Mas é preciso merecer a vida.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Tudo o que Cora Coralina criou e defendeu nunca deu certo e ela se perguntava, por quê? Até que alguém lhe disse: você nasceu antes do seu tempo.


Nasci antes do tempo


Tudo que criei e defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma.
Por quê?

Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
fulano nasceu antes do tempo.
Guardei.

Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda do consolo:
nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou:
você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_coralina

domingo, junho 03, 2007

Vinícius de Moraes, em "Soneto de Fidelidade", com Tom Jobim.



Soneto de fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do meu amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Moraes
(1902-1987)

Mais sobre Vinícius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça, disse Drummond, adorando. Ele nunca pensou ter entre as coxas um deus.


Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça.


Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça
de magnificar meu membro.
Sem que eu esperasse, ficastes de joelhos
em posição devota.
O que passou não é passado morto.
Para sempre e um dia
o pênis recolhe a piedade osculante de tua boca.

Hoje não estás nem sei onde estarás,
na total impossibilidade de gesto ou comunicação.
Não te vejo não te escuto não te aperto
mas tua boca está presente, adorando.

Adorando.

Nunca pensei ter entre as coxas um deus.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Para Cecília, o tempo seca a beleza, o desejo, até o amor. Mas ela espera que o seu Amor-Perfeito seque, não na terra, mas num tempo depois das almas.


Canção do amor-perfeito


O tempo seca a beleza.
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

Cecília Meirelles
(1901-1964)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Em seu coração da cor dos rubros vinhos, Florbela Espanca tecia sonhos irreais. Como a mãe que viu partir o filho que não voltou mais .


Errante


Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…

Meu coração não chega lá decerto…
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto…

Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Quando jovem, John Donne gastou fortuna com mulheres, viagens e livros. Até que um anjo lhe mostrou que o amor daquela mulher podia ser o seu amor.


Air and Angels


Twice or thrice had I loved thee,
Before I knew thy face or name;
So in a voice, so in a shapeless flame,
Angels affect us oft, and worshipped be;
Still when, to where thou wert, I came,
Some lovely glorious nothing I did see.
But since my soul, whose child love is,
Takes limbs of flesh, and else could nothing do,
More subtle than the parent is,
Love must not be, but take a body too;
And therefore what thou wert, and who,
I bid love ask, and now
That it assume thy body I allow,
And fix itself to thy lip, eye, and brow.

Whilst thus to ballast love I thought,
And so more steadily to have gone,
With wares which would sink admiration,
I saw I had love's pinnace overfraught
Every thy hair for love to work upon
Is much too much, some fitter must be sought;
For, nor in nothing, nor in things
Extreme and scatt'ring bright, can love inhere.
Then as an angel, face and wings
Of air, not pure as it, yet pure doth wear,
So thy love may be my love's sphere.
Just such disparity
As is 'twixt air and angel's purity,
'Twixt women's love and men's will ever be.

John Donne
(1572-1631)

Mais sobre John Donne em
http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Donne


Para Adélia Prado, escrever é uma religião. E diante da natureza que não esborda de Deus, ela se pergunta: Mas eu o que sou?


As palavras e os nomes


Me atordoam da mesma forma os místicos
e as lojas de roupa com seus preços.
O dente apodrece
sem que eu levante um dedo para salvá-lo,
já que escolhi o medo como meu deus e senhor.
Tem pó demais na prateleira dos livros
e livros em demasia
e cartas cheias de si me atravancando o caminho:
'Escrever para mim é uma religião'
Os escritores são insuportáveis,
menos os sagrados,
os que terminam assim as suas falas:
'Oráculo do Senhor'.
Eu fico paralisada
porque desejo a posse desse fogo
e a roupa de talhe certo,
com tecidos de além-mar.
Ai, nunca vou fazer 'cantar d'amigo'.
No entanto, como se eu fora galega,
na minh'alma arrulham pombas,
tem beirais, tem manhãzinhas,
costureirinhas, pardais.
Meu nome agora é nenhum,
diverso dos muitos nomes
que se incrustaram no meu,
Délia, Adel,Élia e Lia
e para desgraça minha
ainda Leda, Lea, Dália
Eda, Ieda e ainda Aia.
O melhor!
Aia, a criada de dama nobre,
a dama de companhia,
a que tem por ofício
anotar no papel a vida
espiar pela fresta
a ama gozando com o rei.
Borboleta, esta grafia,
este som é um erro
e os erros me interessam,
sacrifico as aranhas para saber de onde vêem.
A natureza obedece e é feliz,
a natureza só faz sua própria vontade,
não esborda de Deus.
Mas eu o que sou?

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado