quinta-feira, abril 19, 2007

Drummond não conhecia ninguém na noite do Rio, a não ser o vento que vinha de Minas. Ele chorou e disse: a cidade sou eu, sou eu a cidade, meu amor.


Coração numeroso


Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seios batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.

Mas tremia na cidade um fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Um comentário:

Anônimo disse...

Confluência da solidão e das lembranças escorrendo por entre o betão e o alcatrão. Espaço onde as lembranças batem asas contra as paredes e queda, exausta e trémula, a cidade vive em nós e nos dispersa, nos desfaz... Suspenso entre o trabalho, o consumo e o descaço, a pele e as lágrimas tornam coisas:brotam em nós esta espera estendida no abismo: do toque na pele e da errância deste eu desabitado. Cairá em teu peito alguma gota de amor? Colherá, na fluência cotidiana dos espaços de convívio alguma palavra perceptível, que desperte em te algo a mais do que frias deambulações sobre o estado da economia e do calor?Drummond nos ensina que há expectativa no ar, doces e ternas, mas a vida se nos impõe neste curral fechado: a esperança e a lembrança.