sexta-feira, abril 27, 2007

Neste que é um dos seus mais lindos poemas, Drummond diz tudo sobre o amor perdido. Porque as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.


Memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade





Na dúvida que separa, Leminski soa o silêncio de quem grita do escândalo que cala. Até a luz se acender na casa e não caber mais na sala.


Sintonia para pressa e presságio


Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

É surpreendente e impressionante o amor desvairado de Manuel Bandeira pelas 3 mulheres do sabonete Araxá. Por elas, até daria o seu reino.


Balada das três mulheres do sabonete Araxá


As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam,
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor de lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!
São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?

Meu Deus, serão as três Marias?

A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava para beber e nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse...Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!

Se me perguntasem: Queres ser estrela? queres ser rei? queres uma ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Baudelaire procurou no amor um sonho de esquecimento. Para ele, o amor era um colchão de alfinetes feito para dar de beber a estas cruéis mulheres.


La fontaine de sang


Il me semble parfois que mon sang coule à flots,
Ainsi qu'une fontaine aux rythmiques sanglots.
Je l'entends bien qui coule avec un long murmure,
Mais je me tâte en vain pour trouver la blessure.

A travers la cité, comme dans un champ clos,
Il s'en va, transformant les pavés en îlots,
Désaltérant la soif de chaque créature,
Et partout colorant en rouge la nature.

J'ai demandé souvent à des vins captieux
D'endormir pour un jour la terreur qui me mine;
Le vin rend l'oeil plus clair et l'oreille plus fine!

J'ai cherché dans l'amour un sommeil oublieux;
Mais l'amour n'est pour moi qu'un matelas d'aiguilles
Fait pour donner à boire à ces cruelles filles!

Charles Baudelaire
(1821-1867)

Mais sobre Charles Baudelaire em
http://en.wikipedia.org/wiki/Charles_Baudelaire

Cora Coralina nos ensina tudo que aprendeu com seu amor à Humanidade: mais vale lutar do que recolher dinheiro fácil, antes acreditar do que duvidar.


Ofertas de Aninha
(Aos moços)


Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida,
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

quarta-feira, abril 25, 2007

Depois de muito pensar, Fernando Pessoa sente que ele há de ser quem vai chegar, para ser quem quer partir. E que viver é não conseguir.


Basta pensar em sentir

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.

Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.

Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,

Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Emily Dickinson aprendeu com a vida que pressentimento é apenas uma sombra no gramado.


Presentiment is that long shadow on the lawn


Presentiment is that long shadow on the lawn
Indicative that suns go down;
The notice to the startled grass
That darkness is about to pass.


Emily Dickinson
(1830-1886)

Mais sobre Emily Dickinson em
http://en.wikipedia.org/wiki/Emily_Dickinson

Thiago de Mello sente que tudo o que dele se perde, acrescenta-se ao que ele é. Mas se desconhece e pelas suas cercanias passeia, não se frequenta.


Narciso cego


Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio - não me frequento.

Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou,
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.

Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.

Cego assim, não me decifro.
E a imaginar-me sonhado
não me completa a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo - calado pânico -
entre o sonho e o sonhador.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Em seu entender a vida, Adélia Prado nos diz que tudo no mundo é perfeito. E que a morte é amor.


Formas


De um único modo se pode dizer a alguém:
'não esqueço você'
A corda do violoncelo fica vibrando sozinha
sob um arco invisível
e os pecados desaparecem como ratos flagrados.
Meu coração causa pasmo porque bate
e tem sangue nele e vai parar um dia
e vira um tambor patético
se falas no meu ouvido
'não esqueço você'
Manchas de luz na parede,
uma jarra pequena
com três rosas de plástico.
Tudo no mundo é perfeito
e a morte é amor.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Para Augusto dos Anjos, o amor era como a cana azeda. A toda a boca que o não prova engana.


Versos de amor


Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a . . ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
E Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias - o inventor da flauta -
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal faze-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d'alma!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

segunda-feira, abril 23, 2007

Para a maioria dos mortais, nem a dialética pode explicar que, tendo tudo para ser feliz, Vinícius acontecesse de ser um triste...


Dialética


É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes


O que é o amor? O que é a vida? Neste poema, Robert Louis Stevenson encontrou as respostas para estas duas questões fundamentais da humanidade .


Love, what is love


Love - What is love? A great and aching heart,
Wrung hands; and silence; and a long despair.
Life - What is life? Upon a moorland bare
To see love coming and love depart.


Robert Louis Stevenson
(1850-1894)

Mais sobre Robert Louis Stevenson em
http://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Louis_Stevenson

Na segunda canção de muito longe, Mario Quintana se emociona com as memórias da sua infância. Foi só fechar os olhos e pensar numa outra coisa.


Segunda canção de muito longe


Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro...

Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa...

Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos reluzentes, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas...
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos...
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorrros,
O chiar das chaleiras...
Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar a Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!...
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!


Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Nos versos de Florbela, o céu não era azul como antigamente. Até que um dia Deus fez uns olhos tão azuis que o céu, ciumento, tornou-se da mesma cor.


Os teus olhos

O céu azul, não era
Dessa cor, antigamente;
Era branco como um lírio,
Ou como estrela cadente.

Um dia, fez Deus uns olhos
Tão azuis como esses teus,
Que olharam admirados
A taça branca dos céus.

Quando sentiu esse olhar:
"Que doçura de primor!"
Disse o céu, e ciumento,
Tornou-se da mesma cor!

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

A mão do poeta sacodiu a floresta do maiô de Ondina, enquanto ele ouvia a trompa da caçada às sereias. E um peixe vermelho fez todo o oceano tremer.


Estudo para uma ondina


Esta manhã o mar acumula ao teu pé rosas de areia,
Balançando as conchas de teus quadris.
Ele te chama para longas navegações:
Tua boca, tuas pernas teu sexo teus olhos escutaram.

Só teus ouvidos é que não escutaram, ondina.
Minha mão lúcida sacode a floresta do teu maiô.
Ao longe ouço a trompa da caçada às sereias
E um peixe vermelho faz todo o oceano tremer.

Tens quinze anos porque já tens vinte e sete,
tens um ano apenas...
Agora mesmo nasceste da espuma,
E na incisão do ar líquido alcanças o amor dos elementos.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

sábado, abril 21, 2007

Como um passo como de ir parar pela rua vazia, Fernando Pessoa ia sobre a chuva. Ia amargo e diluído e tinha a face nua.


Vou como um passo como de ir parar


Vou como um passo como de ir parar
Pela rua vazia
Nem sinto como um mal ou mal-'star
A vaga chuva fria...
Vou pela noite da indistinta rua
Alheio a andar e a ser
E a chuva leve em minha face nua
Orvalha de esquecer ...
Sim, tudo esqueço.Pela noite sou
Noite também
E vagaroso eu ... vou,
Fantasma de magia. No vácuo que se forma de eu ser eu
E da noite ser triste
Meu ser existe sem que seja meu
E anônimo persiste ... Qual é o instinto que fica esquecido
Entre o passeio e a rua?
Vou sob a chuva, amargo e diluído
E tenho a face nua.


Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

O lenço de Marília, pelas suas mãos lavrado para Dirceu, conta já século e meio de guardado. Que amores como este lenço têm durado?


Este é o lenço


Este é o lenço de Marília,
pelas suas mãos lavrado,
nem a ouro nem a prata,
somente a ponto cruzado.
Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Em cada ponta, um raminho,
preso num laço encarnado;
no meio, um cesto de flores,
por dois pombos transportado.
Não flores de amor-perfeito,
mas de malogrado!

Este é o lenço de Marília:
bem vereis que está manchado:
será tempo perdido?
será o tempo passado?
Pela ferrugem das horas?
ou por molhado
em águas de algum arroio
singularmente salgado?

Finos azuis e vermelhos
do largo lenço quadrado,
- quem pintou nuvens tão negras
neste pano delicado,
sem dó de flores e de asas
nem do seu recado?

Este é o lenço de Marília,
por vento de amor mandado.
Para viver de suspiros
foi pela sorte fadado:
breve suspiros de amante,
- longos, de degredado!

Este é o lenço de Marília
nele vereis retratado
o destino dos amores
por um lenço atravessado:
que o lenço para os adeuses
e o pranto foi inventado.

Olhai os ramos de flores
de cada lado!
E os tristes pombos, no meio,
com o seu cestinho parado
sobre o tempo, sobre as nuvens
do mau fado!

Onde está Marília, a bela?
E Dirceu, com a lira e o gado?
As altas montanhas duras,
letra a letra, têm contado
sua história aos ternos rios,
que em ouro a têm soletrado...

E as fontes de longe miram
as janelas do sobrado.

Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Eis o que resta dos sonhos:
um lenço deixado.

Pombos e flores, presentes.
Mas o resto, arrebatado.

Caiu a folha das árvores,
muita chuva tem gastado
pedras onde houvera lágrimas.
Tudo está mudado.

Este é o lenço de Marília
como foi bordado.
Só nuvens, só muitas nuvens
vêm pousando, têm pousado
entre os desenhos tão finos
de azul e encarnado.
Conta já século e meio
de guardado.

Que amores como este lenço
têm durado,
se este amor está durando
mais que o amor representado?


Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

As desventuras da negra Fulô não terminaram nem quando ela tirou saia, o cabeção e ficou nuinha na frente do Sinhô. Ah! essa negra Fulô!


Essa negra Fulô


Ora, se deu que chegou
(isto já faz muito tempo)
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada Negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! O Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
- Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô
ficou logo pra mucama,
para vigiar a Sinhá
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!

vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco"

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou"

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a Negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?

-Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor
A negra tirou a roupa.

O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas
cadê meu cinto, meu broche,
cadê meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção
de dentro dele pulou,
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?

Essa negra Fulô!

Jorge de Lima
(1893-1953)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

Tantos anos depois, quando a luz já é amarela e as noites são lentas, Bukowski ainda se lembrava de Rosalie, a que trazia magia aos solitários.


Love poem to a stripper


50 years ago I watched the girls
shake it and strip
at The Burbank and The Follies
and it was very sad
any very dramatic

as the light turned from green to
purple to pink
and the music was loud and
vibrant
now I sit here tonight
smoking and
listening to classical
music
but I still remember some of
their names: Darlene, Candy, Jeanette
and Rosalie.

Rosalie was the
best, she knew how
and we twisted in our seats and
made sounds
and Rosalie brough magic
to the lonely
so long ago.

now Rosalie
either so very old or
so quiet under the
earth,
this is the pimple-faced
kid
who lied about his
age
just to watch
you.

you were good, Rosalie
in 1935,
good enough to remember
now
when the light is
yellow and the nights are
slow.

Charles Bukowski
(1920-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Bukowski

Nos versos do poeta, Ismália enlouqueceu e pôs-se a cantar na torre. E com as asas que Deus lhe deu, sua alma subiu ao céu, seu corpo desceu ao mar.


Ismália


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na terra a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E no desvario seu,
na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alphonsus_de_Guimaraens

quinta-feira, abril 19, 2007

Drummond não conhecia ninguém na noite do Rio, a não ser o vento que vinha de Minas. Ele chorou e disse: a cidade sou eu, sou eu a cidade, meu amor.


Coração numeroso


Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seios batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.

Mas tremia na cidade um fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

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Se fosse constante como a estrela bilhante, Keats queria escutar o terno respirar de seu amor. E assim viver para sempre ou desmaiar para a morte.


Bright Star


Bright star, would I were stedfast as thou art--
Not in lone splendour hung aloft the night
And watching, with eternal lids apart,
Like nature's patient, sleepless Eremite,
The moving waters at their priestlike task
Of pure ablution round earth's human shores,
Or gazing on the new soft-fallen mask
Of snow upon the mountains and the moors--
No--yet still stedfast, still unchangeable,
Pillow'd upon my fair love's ripening breast,
To feel for ever its soft fall and swell,
Awake for ever in a sweet unrest,
Still, still to hear her tender-taken breath,
And so live ever--or else swoon to death.

John Keats

(1795-1821)

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Ascenso Ferreira sabia muito bem dar valor às coisas boas da vida. Afinal de contas, ninguém é de ferro.


Filosofia


Hora de comer - comer!
Hora de dormir - dormir!
Hora de vadiar - vadiar!

Hora de trabalhar?
- Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

Ascenso Ferreira
(1895-1965)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascenso_Ferreira

No seu retrato, Cecília não tinha visto o rosto triste e magro, nem os olhos tão vazios e o lábio amargo. E muito menos o coração que nem se mostra.


Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança
tão simples, tão certa
Tão fácil:
-Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meirelles
(1901-1964)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Na oculta consciência de não ser, numa fuga para o ponto de partida, Saramago sente um perto que é tão longe, um longe aqui.


Espaço curvo e finito


Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças
E ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe,
Um longe aqui.

Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

José Saramago

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago





sábado, abril 14, 2007

O poeta não tirou o bilhete para a vida e errou a porta do sentimento. Para ele, mais vale não ser que ser assim, mais vale arrumar a mala.


Grandes

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala. Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.

Álvaro de Campos,
um dos heterônimos de Fernando Pessoa

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Deveria ser assim a esposa que Vinicius de Moraes nunca teria. E não teve mesmo.


A esposa


Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha - e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.

Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...
Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Para Mário Quintana, a morte é que está morta. Porque ela era apenas alma.


A morte é que está morta

Ela é aquela Princesa Adormecida
no seu claro jazigo de cristal.
Aquela a quem, um dia - enfim - despertarás...

E o que esperavas ser teu suspiro final
é o teu primeiro beijo nupcial!

- Mas como é que eu te receava tanto
(no teu encantamento lhe dirás)
e como podes ser assim - tão bela?!
Nas tantas buscas, em que me perdi,
vejo que cada amor tinha um pouco de ti...

E ela, sorrindo, compassiva e calma:

- E tu, por que é que me chamavas Morte?
Eu sou, apenas, tua Alma...

Mario Quintana

(1906-1994)

Mais sobre Mário Quintana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

O homem sobre quem caíu a praga da tristeza do mundo, nunca mais o seu pesar se acaba. E quando se transforma em verme, é essa mágoa que o acompanha.


Eterna mágoa


O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo Inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acampanha ainda!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Um homem do mundo perguntou à Adélia Prado o que ele pensava do sexo. E a resposta dela foi uma maravilha.


Entrevista


Um homem do mundo me perguntou:
o que você pensa do sexo?
Uma das maravilhas da criação eu respondi.
Ele ficou atrapalhado, porque confunde as coisas
e esperava que eu dissesse maldição,
só porque antes lhe confiara:
o destino do homem é a santidade.
A mulher que me perguntou cheia de ódio:
você raspa lá? Perguntou sorrindo,
achando que assim melhor me assassinava.
Magníficos são o cálice e a vara que ele contém,
peludo ou não.
Santo, santo, santo é o amor que vem de Deus,
não porque uso luva ou navalha.
Que pode contra ele o excremento?
Mesmo a rosa, que pode a seu favor?
Se "cobre a multidão dos pecados e é benigno,
como a morte duro, como o inferno tenaz",
descansa em teu amor, que bem estás.


Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

terça-feira, abril 10, 2007

A Flor mais bela tinha a certeza de que ele nunca encontraria amor assim como o dela. Um amor que chorava em beijos de amor, que eram os seus versos.


Doce certeza


Por essa vida afora hás de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d'oiro fulgindo em minha boca!

Hás de guardar em cofre perfumado
Cabelos d'oiro e risos de mulher,
Muito beijo d'amor apaixonado;
E não te lembrarás de mim querer!...

Hás de tecer uns sonhos delicados...
Hão de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos!...

Mas nunca encontrarás p'la vida fora,
Amor assim como este amor que chora
Neste beijo d'amor, que são meus versos!

Florbela Espanca

(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Neste poema, o mais rebelde dos modernistas reescreve um pouco da carta de Pero Vaz que aqui Caminha.


Pero Vaz Caminha


a descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava de Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra

os selvagens

Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados

primeiro chá

Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real

as meninas da gare

Eram tres ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha

Oswald de Andrade

(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

Manuel Bandeira tinha tudo que não queria e não tinha nada que queria. Mas o que mais lhe fazia querer era o moreno de Estela.


Belo belo


Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando nolusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

segunda-feira, abril 09, 2007

Cecília Meirelles não pediu alegria, ilusão, esperança nem amor. Apenas um pouco da lembrança do aroma perdido, saudade da flor.


Murmúrio

Traze-me um pouco das sombras serenas
Que as nuvens transportam por cima dos dias
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a morte sustenta no seu coração
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!

Cecília Meirelles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meirelles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles


Em seu canto de dor, o poeta recorda como Garcia Lorca soube enfrentar a morte. E como jorrou o vermelho, cor do mito criado com a força humana.


Canto a Garcia Lorca


Não basta o sopro do vento

Nas oliveiras desertas,

O lamento de água oculta

Nos pátios de Andaluzia.


Trago-te o canto poroso

O lamento consciente

Da palavra à outra palavra

Que fundaste com rigor.


O lamento substantivo

Sem ponto de exclamação

Diverso do rio antigo,

Une a aridez ao fervor.


Recordando que soubeste

Defrontar a morte seca

Vinda no gume certeiro

Da espada silenciosa

Fazendo irromper o jacto


De vermelho: cor do mito

Criado com a força humana

Em que sonho e realidade

Ajustam seu contraponto.


Consolo-me da tua morte

Que ela nos elucidou

Tua linguagem corporal

Onde el duende é alimentado

Pelo sal da inteligência,

Onde Espanha é calculada

Em número, peso e medida.


Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

sábado, abril 07, 2007

A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. E a verdade era dividida em metades diferentes uma da outra.


A verdade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Em seu louco amor, Vinicius é fiel à sua lei de cada instante. Desassombrado, doido, delirante, numa paixão de tudo e de si mesmo.


Soneto do amor maior

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Neste poeminha, fica a impressão que Mario Quintana não foi politicamente correto. Mas que foi engraçado, lá isso foi.


Da amizade entre mulheres

Dizem-se amigas... Beijam-se... Mas qual!
Haverá quem nisso creia?
Salvo se uma das duas, por sinal,
For muito velha, ou muito feia...

Mario Quintana

(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Cora Coralina ajuntou todas as pedras que vieram sobre ela. E foi entre pedras que a esmagavam que levantou a pedra rude dos seus versos.


Das pedras


Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina

(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Nos versos do poeta, a alma viúva das paixões da vida não devia soluçar a ilusão perdida. Entristecida, devia era esconder à Natureza o sofrimento.


Infeliz


Alma viúva das paixões da vida,
Tu que, na estrada da existência em fora,
Cantaste e riste, e na existência agora
Triste soluças a ilusão perdida;

Oh! Tu, que na grinalda emurchecida
De teu passado de felicidade
Foste juntar os goivos da Saudade
Às flores da Esperança enlanguescida;

Se nada te aniquila o desalento
Que te invade, e o pesar negro e profundo,
Esconde à Natureza o sofrimento,

E fica no teu ermo entristecida,
Alma arrancada do prazer do mundo,
Alma viúva das paixões da vida.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

quinta-feira, abril 05, 2007

O poeta sabia que temos, todos, uma vida que é vivida e outra que é pensada. E a única que temos é essa que é dividida entre a verdadeira e a errada.


Tenho tanto sentimento

Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Florbela queria amar, amar perdidamente. Amar só por amar, amar Este e Aquele, o Outro e toda a gente... e não amar ninguém.


Amar


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Bastava um pequeno gesto, mas ela não o fez. Em sua timidez, Cecília esperava ser descoberta, até não se sabe quando...


Timidez


Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...
- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
- e um dia eu me acabarei.

Cecília Meirelles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meirelles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Em seus versos, o poeta deixa a vida como deixa o tédio. E fez um último pedido para que escrevessem em sua cruz: Foi poeta, sonhou e amou a vida...


Tristeza

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro;
Como as horas de um longo pesadelo,
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como um desterro de minha alma errante,
Onde fogo insensato a consumia...
Só levo um saudade - é um desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade - é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz - e escrevam nela:
Foi poeta, sonhou e amou a vida...

Álvares de Azevedo

(1831-1852)

Mais sobre Álvares de Azevedo em

http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo

O poeta amava este inferno de amar, que é vida e que a vida destrói. Que fez ela, que fiz eu? Não o sei, mas nessa hora a viver comecei, reconhece.


Este inferno de amar

Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando, ai, quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim, despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não o sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garret

(1799-1854)

Mais sobre Almeida Garrett em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Garrett

terça-feira, abril 03, 2007

Sem cor, sem rosa, sem perfume. Em seus versos, o poeta disse tudo sobre o horror da bomba atômica.


A rosa de Hiroxima


Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.


Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Cecília estava mesmo encantada pelo pássaro da água. E esperava apenas sobreviver, na eternidade da água, ao movimento do nadador.


Nadador


O que me encanta é a linha alada
das tuas espáduas, e a curva
que descreves, pássaro da água!

É a tua fina, ágil cintura,
e esse adeus da tua garganta
para cemitérios de espuma!

É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
fiel à queda, rápida e branda.

E apenas por estar prevendo,
longe, na eternidade da água,
sobreviver teu movimento...

Cecília Meirelles
(1901-1964)

Mais sobre um Cecília Meirelles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Dê-me um cigarro, diz a gramática do professor e do aluno. Já o poeta diz: deixa disso camarada, os brasileiros dizem mesmo é me dá um cigarro.


Pronominais


Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

Pobre poeta, em seu caso não era possível tentar nem o pneumotórax. Para o médico, a única coisa a fazer era tocar um tango argentino.


Pneumotórax


Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos,
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

- Diga trinta e três.
- Trinta e três...trinta e três...trinta e três...
- Respire.

..........................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não, a única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Naqueles dias de terror e escuridão, Gullar chegou a dizer adeus à ilusão, mas não ao mundo. Mas não à vida, e foi construir um poema, uma bandeira.


Agosto 1964


Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro - Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poema
uma bandeira


Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar