segunda-feira, março 27, 2006

Poesia. Onde todos os sonhos do mundo podem ser vividos.



Fernando Pessoa escrevia a vida como eu gostaria de escrevê-la.
E a via com os olhos de quem sabia tudo ou quase tudo sobre ela.
E eu, que nada sei?
Mas, também tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Como o poeta.
Quanto a ser um personagem de mim mesmo, nada melhor do que os versos dele, o grande Pessoa:
"Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!"
A diferença entre criador e criatura muitas vezes está justamente na genialidade de quem cria, como Pessoa fez com os seus heterônimos, muitas vezes melhores do que ele próprio.
Para finalizar, lembrando Ricardo III, de Shakespeare:
"Eu sou José Antonio Leão Ramos, e eu sou eu."
Melhor, apenas eu.
Para você, que não me conhece, mas quem sabe ainda vai me encontrar pelos descaminhos dessa vida, o mais belo dos poemas de Fernando Pessoa:


Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pesssoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, março 05, 2006

O Amor.


O Amor morto antes de nascer.

Eu sempre imaginei que as palavras podiam dizer tudo.
Tudo o que meu coração sonhava.
Vivi uma grande ilusão.
A ilusão de que, em meu silêncio, bastava sentir.
E todos entenderiam tudo o que eu sentia.
A minha dor seria confortada.
E o amor retribuído.
Tudo sem que eu precisasse dizer nada.
Quando me parti quase por inteiro de tanto amor, descobri que aquela era a dor maior.
A dor do amor que não sabia se fazer nascer.
Um amor abortado dói.
Dói muito mais do que um amor perdido.
Um amor não vivido, agora eu sei, é um sofrimento que se carrega pela vida.
É uma ferida profunda, daquelas que não saram nunca.
E o pior é que toda aquela dor não era nem sabida.
Nem por ela, nem por ninguém.
Ela foi muito amada, mas nunca teve certeza disso.
Pensava, talvez como eu, que aquilo tudo era uma brincadeira.
Ou um jogo, uma daquelas brincadeiras ainda dos tempos de criança.
Éramos apenas dois adolescentes, duas almas jovens que não sabiam nada da vida.
E naquela casa grande, em que vivemos tantos momentos felizes, meu coração ficou calado.
Da minha boca, não saiu nunca uma só palavra.
Nem um gesto mais ousado.
Nada, nada que pudesse ser entendido.
Nada que dissesse o que eu sentia.
E quanto mais calado eu ficava, mais me obrigava a escrever.
Enchi páginas e páginas com as palavras que não tinha coragem de dizer.
Quantas declarações de amor meu coração guardou só para ele.
E eram todas para ela.
Mas ao ver o seu sorriso, ficava mudo.
Diante do seu olhar, ficava paralisado.
Quando ela falava, eu não conseguia escutar nada.
Meu coração disparava com um bater tão forte que eu ficava surdo.
Meus olhos nada enxergavam, ficava tudo escuro.
O fôlego faltava, o peito doía, parecia que me partia por dentro.
O amor da melhor época da minha vida, foi-se para sempre.
Perdi-o ainda menino.
Para sempre.
Como devo ter perdido tantos outros em minha vida.
Dos que ganhei, nem vou falar.
O meu coração endurecido por tantas guerras ainda bate forte.
O tempo passou, tudo aconteceu.
Tudo, inclusive nada.
Nada foi como eu tinha sonhado.
Foi, como foi possível.
Sempre.
Aquele sonho de um amor primeiro virou pó.
Outros nasceram, cresceram, muitos morreram de morte morrida.
Poucos, de morte matada.
Mas, pelo menos, eu os vivi.
Intensamente, com todas as minhas forças.
Nunca mais fiquei mudo diante do amor.
Nunca mais me faltaram as palavras.
Nunca mais tive medo de me expor.
De gritar o meu sentimento.
De tanto dizer o que estava sentindo, deixei só de pensar.
Sofri o bom sofrimento.
Aliás, sofrendo é o gerúndio que se tornou infinito em minha vida.
Mas, eu agora amo, com toda a minha emoção.
Amo, e muito.
Cada vez, mais.
Cada dia, mais.
Apesar de tudo.
Apesar de mim.
Apesar da vida.
Apesar de todos.
E como aprendi que o poeta tem sempre a palavra certa, vou socorrer-me do maior deles para bem dizer o que deveria ter sido o eterno amor.
Aquele da metade do século passado.
Quando os anos eram dourados.
Quando eu ainda acreditava que bastava sentir para viver um grande amor.

JALR

O Amor

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de *dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa